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PARA ALÉM DOS EDITAIS: A NECESSIDADE DA ARTE A necessária distinção entre cultura e arte nas políticas públicas

  • Foto do escritor: Marcelo Bones
    Marcelo Bones
  • 6 de out.
  • 8 min de leitura

Marcelo Bones

Julho de 2025

 

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Quando fiz o curso de Sociologia na FAFICH – UFMG, e isso foi há muitos... muitos anos, tive acesso ao livro A Necessidade da Arte, de Ernst Fischer. Sem menosprezar o conteúdo, denso e corajoso, escrito num tempo em que a arte ainda era vista como motor de transformação e não como apêndice decorativo das políticas sociais, o que mais me marcou foi o próprio título. Foi a força silenciosa da pergunta embutida no nome que me seguiu até hoje. Àquela altura, eu já ensaiava minhas primeiras aventuras como artista e profissional do teatro e do circo, paralelamente ao curso universitário. E desde então, entre palcos, praças, editais e desmontes, nunca parei de me perguntar ou de ter que responder, afinal: qual é a necessidade da arte?

O livro me marcou porque tratava a arte não como ornamento, nem como luxo ou privilégio, mas como algo fundamental à experiência humana. Fischer afirmava que a arte nasce da própria condição de inacabamento do ser humano: ela seria um modo de tornar o mundo habitável, ao mesmo tempo em que revela sua imperfeição. Uma forma de reencantar o cotidiano sem negá-lo, de denunciar a alienação sem abrir mão da beleza, de resistir à barbárie com imaginação. A arte, para ele, é necessária porque reconecta o ser humano consigo mesmo, com o outro e com a possibilidade de um mundo diferente. Não como fuga, mas como presença ampliada. Não como produto, mas como linguagem. Essa visão, que me arrebatou ainda jovem, continua me acompanhando sempre que vejo a arte ser tratada como “ação cultural”, genérica, mensurável, domesticada, nos documentos e planos de fomento do Estado. De lá para cá, é certo que o pensamento acadêmico sobre cultura avançou muito. Mas eu, artista e gestor, segui por outro caminho. Acompanhei esses avanços acadêmicos à distância, atento mais às praças e aos palcos do que às bibliotecas, mas sempre com essa pergunta, que nunca deixou de me convocar: qual é, afinal, a necessidade da arte?

É preciso, antes de tudo, marcar uma diferença fundamental, muitas vezes esquecida de modo geral e, sobretudo, no campo das políticas públicas, entre arte e cultura. Embora compartilhem territórios, se interseccionem e, em muitos casos, se confundam, o que é próprio da complexidade contemporânea, são campos distintos. A cultura diz respeito aos modos coletivos de viver, aos saberes compartilhados, aos rituais, às práticas que constroem vínculos e estruturam a memória e o pertencimento. A arte, mesmo quando nasce da cultura, opera em outra lógica: a da invenção, da forma e da linguagem. Não se limita a reproduzir o que já é, mas se lança na criação do que ainda não foi. Enquanto a cultura tende à permanência e à transmissão, a arte se inclina para a ruptura, para a descontinuidade e para a reinvenção. A cultura afirma identidades; a arte pode desestabilizá-las. Reconhecer essa diferença não significa opor nem hierarquizar. Significa compreender que arte e cultura têm funções simbólicas, modos de existência, de fruição, de formação e de transmissão distintos e, por isso, demandam políticas públicas também diferenciadas. Quando essa distinção é apagada, corremos o risco de exigir da arte aquilo que ela não pode, nem deve, oferecer, reduzindo-a a uma ferramenta auxiliar de mediação cultural ou a uma forma uniformizada de intervenção social.

A questão é que boa parte das políticas públicas hoje insiste em tratar arte e cultura como se fossem expressões equivalentes, intercambiáveis, confundidas. A arte, assim, é convocada a se ajustar à mesma lógica que orienta ações culturais comunitárias ou patrimoniais: presença territorial obrigatória, função social explícita, impacto mensurável, engajamento direto. Ela passa a ser vista como ferramenta, estratégia ou suporte pedagógico. Nesse processo, perde sua condição mais profunda: a de ser um fim em si mesma. A arte não serve, e é justamente por isso que ela é necessária. Não responde a metas nem se submete a objetivos externos. Sua existência não se justifica por tabelas ou contrapartidas. A arte basta no gesto que a inicia, no movimento que rompe o previsível, no acontecimento que suspende o real e abre um campo outro de experiência. Seu valor está justamente no que escapa, e isso nem sempre pode ser planejado.

Quando voltamos o olhar para a arte como ofício profissional, a diferença em relação à cultura torna-se ainda mais nítida. O artista, formado em escolas, universidades, conservatórios ou em longos percursos de aprendizagem não formal (mestres de tradição, grupos de pesquisa, laboratórios coletivos, vivências de palco e de rua), trabalha com elementos que escapam à lógica utilitária: ficção e abstração. É na elaboração consciente da ficção que a arte desenha mundos outros; é na força da abstração que ela modela formas capazes de condensar e expandir sentidos. Essa combinatória exige tempo, rigor técnico, pesquisa continuada e espaços de risco. Muitas vezes requer também infraestrutura específica, como salas de ensaio equipadas, ateliers, estúdios de gravação, sistemas de iluminação cênica ou acervos digitais, custos que tornam ainda mais difícil a sustentabilidade de coletivos e artistas individuais. Políticas públicas que tratam a arte como simples extensão cultural raramente alcançam tais necessidades: financiam a visibilidade, mas não sustentam o processo; pagam o produto final, mas não investem na formação permanente, na pesquisa de linguagem, na manutenção de grupos. Se reconhecermos que a arte profissional opera num território onde a invenção formal, o pensamento abstrato e a fabulação consciente são ferramentas essenciais, então o fomento precisa acolher essa especificidade. Esse princípio reforça a noção de que políticas públicas para as artes devem contemplar não só o resultado final, mas todo o ecossistema que sustenta a pesquisa estética, o aprimoramento técnico e a densidade ética que um ou uma artista pode oferecer à sociedade. Caso contrário, o país continuará confundindo arte com entretenimento ocasional ou com ação sociocultural genérica, deixando órfão justamente o lugar onde a linguagem se reinventa e onde a sociedade pode se ver, em ficção, para imaginar-se de outro modo.

Falo a partir de uma experiência direta e engajada no que se convencionou chamar de teatro de grupo. Desde meados da década de 1980 mergulhei nesse universo que se organiza pela coletividade, pela partilha dos processos e pela busca de autonomia estética e política. Naquele período, estendido pelos anos 1990, a articulação entre companhias, coletivos e movimentos foi intensa: festivais independentes, circuitos alternativos, encontros nacionais, manifestos e pesquisas acadêmicas; tudo convergia para fortalecer um segmento que entendia o palco como lugar de criação e de debate público. Havia, nessa militância, uma tríade que orientava a prática: estética, técnica e ética. A estética apontava para a invenção de linguagens próprias, fruto de pesquisa continuada e diálogo com o público; a técnica, entendida não como formalismo vazio, mas como domínio rigoroso dos meios expressivos, garantia a concretude do gesto criativo; a ética, por fim, ligava criação e postura de grupo a um compromisso com a coletividade, com o sentido de comunidade e com a crítica às estruturas de poder que cercam o fazer artístico. Estudos sobre o teatro brasileiro desse período registram como essa tríade forjou obras que, ao mesmo tempo, experimentavam formas e propunham novos modos de organização do trabalho e de relação com a sociedade.

Experiências internacionais mostram que diversos países distinguem, com nitidez e sem hierarquias, os instrumentos de apoio à criação artística daqueles voltados à cultura em sentido amplo. Esses modelos reforçam a ideia central deste texto. Demandas diferentes requerem políticas específicas, e arte e cultura cumprem funções públicas complementares. No Brasil, os atos de refundação do Ministério da Cultura já apontam nessa direção, ao estabelecer como competência do órgão “a política nacional de cultura” e “a política nacional das artes”, sinalizando que cada campo merece abordagem própria. É importante lembrar que o país já possui uma fundação específica para as artes, a Funarte; contudo, suas atribuições cobrem apenas parte do ecossistema artístico, enquanto outras instâncias federais também executam programas para diferentes linguagens. Nos níveis estaduais e municipais, frequentemente existe apenas uma secretaria ou fundação encarregada de tudo ao mesmo tempo: patrimônio, economia criativa, cultura popular e também as artes profissionais, o que dilui a atenção às especificidades de cada campo. Em junho de 2025, o Ministério apresentou uma proposta de texto-base para orientar a implementação da Política Nacional das Artes, coordenada pela Funarte, retomando o processo iniciado em 2015 e interrompido pelo impeachment da presidenta Dilma; à época, atuei como consultor e articulador da linguagem do teatro. A nova proposta está em debate público e pretendo fazer algumas considerações a respeito em outro texto. Aqui, interessa sublinhar o que tanto o decreto de 2023 quanto a proposta de 2025 reafirmam. É preciso traçar com nitidez a diferença entre arte e cultura e implantar políticas diferenciadas que contemplem as especificidades de cada uma.

A Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (PNAB) trouxe fôlego inédito ao financiamento cultural brasileiro. A União entrega, a cada ano, parcela única de até R$ 3 bilhões a estados e municípios, num ciclo plurianual. O desenho federativo impõe contrapartidas importantes, por exemplo, plano de aplicação de recursos, manutenção do orçamento próprio de cultura e meta de destinar pelo menos 20% dos recursos a territórios periféricos e comunidades tradicionais, além de percentuais mínimos para o Programa Cultura Viva. Esses avanços consolidam uma infraestrutura de fomento cultural continuado, mas, tal como está, a PNAB, no seu plano geral, não diferencia as especificidades da criação artística profissional: a lei agrupa “ações, iniciativas, atividades e projetos culturais” em um único guarda-chuva, de modo que o mesmo edital local, muitas vezes, pode alocar recursos tanto para patrimônio e festas populares quanto para fazedores das linguagens artísticas. A consequência, confirmada nos primeiros editais, é a permanência do modelo concorrencial genérico, em que arte e cultura disputam o mesmo envelope financeiro, sem linhas dedicadas às questões específicas das artes, como a infraestrutura necessária para se fazer arte profissional. Assim, mesmo sendo um marco para as políticas culturais, a PNAB deixa em aberto o desafio central deste artigo: traçar com nitidez a diferença entre cultura e arte e implantar instrumentos de fomento específicos para cada campo nos municípios e nos estados, com a necessária coordenação da esfera federal.

Há, é verdade, um sinal de mudança que merece atenção. Em junho de 2025, o Ministério da Cultura lançou o Programa Nacional Aldir Blanc de Apoio a Ações Continuadas, concebido para ir além dos editais esporádicos. A proposta reconhece que a sazonalidade e o caráter fragmentado dos projetos pontuais precarizam artistas, grupos, coletivos e espaços de criação. O programa acena com apoio plurianual, inicialmente de (no mínimo) dois anos, período ainda muito modesto para processos artísticos, a coletivos, espaços culturais e eventos permanentes, valorizando trajetórias de longa duração e repertórios contínuos. Ainda assim, o alcance real dessa iniciativa dependerá de quantos estados e municípios irão aderir e como a implantarão, do volume de recursos efetivamente destinado e da capacidade de avaliar percursos criativos para além de indicadores genéricos. Em outras palavras, a intenção é promissora, mas seu impacto só se confirmará se as esferas governamentais assumirem, na prática, que a arte não cabe em cronogramas de curto prazo e exige ferramentas e instrumentos específicos.

Hoje, persiste entre poder público e sociedade civil, incluindo parte dos fazedores de cultura e das artes, uma confusão que trata arte e cultura como se fossem peças intercambiáveis de um mesmo mecanismo sociocultural. Esse embaralhamento é danoso: amortece o pensamento crítico, submete a criação a métricas externas e bloqueia o alcance de políticas que deveriam sustentar justamente quem pesquisa, arrisca e reinventa linguagem. Quando arte e cultura são lançadas no mesmo cesto de obrigações genéricas, perdem a nitidez de suas funções complementares e o país

desperdiça potência simbólica. Reconhecer a diferença não significa dividir um orçamento já escasso; significa multiplicar a eficácia de cada real investido. Cabe ao Estado criar instrumentos que garantam a autonomia da arte e à sociedade civil, fazedores de cultura e das artes, gestores e público, defender esse espaço como direito inegociável. Só assim a arte continuará perguntando e a cultura seguirá respondendo, cada qual em seu lugar, ambos essenciais para a democracia que ainda estamos construindo. Se até a lei que refundou o Ministério e lhe atribuiu duas competências, “política nacional de cultura” e “política nacional das artes”, já admite nas entrelinhas que estamos falando de campos diferentes, por que não levar a letra da lei às últimas consequências?

Fica a sugestão, entre um sorriso maroto e a esperança de precisão: que tal mandarmos fundir uma placa nova para a Esplanada com o título “Ministério da Cultura e das Artes”?

 
 
 

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