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Além dos Editais: notas para um novo paradigma de fomento à cultura e às artes

  • Foto do escritor: Marcelo Bones
    Marcelo Bones
  • há 2 dias
  • 6 min de leitura

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Marcelo Bones

10 de dezembro de 2025

 

O texto que segue nasceu de uma fala apresentada no MICBR 2025, no painel multissetorial “Além dos Editais: novos caminhos para o fomento à cultura”, realizado em 4 de dezembro. Ao lado de Léo Lessa, diretor executivo da Funarte; Raúl Neftalí Castillo Rosales, Ministro da Cultura de El Salvador; e Leandro Maciel Silva, coordenador de Políticas para as Artes da Secretaria de Cultura do Ceará; com mediação de Lia Baron, compartilhei algumas inquietações que venho acumulando há anos sobre o esgotamento do modelo de editais e seus efeitos sobre o ecossistema artístico brasileiro. A fala, lida ali em voz alta, nasce da prática, da cena, das fricções entre criação e política, e carregava o desejo de provocar um deslocamento, ainda que pequeno, no modo como temos pensado o fomento. Ao transformá-la agora em texto, mantenho o mesmo gesto: o de oferecer uma reflexão que não pretende encerrar nada, mas abrir passagens para que possamos imaginar, juntos, um outro horizonte para as artes e para a cultura no país.

Segue a fala:

Quero, mais uma vez, compartilhar e dividir algumas reflexões que venho acumulando nos últimos anos. Falo deste lugar híbrido, para mim sempre fértil: o artista, o gestor, às vezes gestor privado, às vezes gestor público, e em certos momentos até as duas coisas misturadas e, ainda, o pesquisador informal da prática, o inquieto e uma pontinha de prazer pela provocação. Talvez essa mistura me obrigue, há décadas, a olhar as políticas públicas pelo prisma da cena, da criação, da prática, do cotidiano e, claro, da política enquanto espaço de disputa e, também, de invenção.

Começo afirmando algo simples, mas complexo, que tenho repetido nos vários textos que escrevi neste ano de 2025: precisamos reconhecer o que chamei de o COLAPSO DOS EDITAIS. Não é exagero, creio, dizer que estamos chegando ao limite de um modelo. Não se trata de negar a importância dos editais. Pelo contrário. Esse instrumento foi fundamental em muitos períodos, no processo de democratização da distribuição de recursos públicos, acabando com o “balcão” institucionalizado e, sobretudo no pós-pandemia, quando ajudou a garantir a sobrevivência de artistas, grupos, coletivos e espaços, pelas leis de emergência cultural. Mas reconhecer a importância de algo não nos impede de admitir que esse modelo, tal como está colocado, exauriu sua capacidade. Hoje ele não resolve mais o que precisa resolver. Chamo isso, nos meus textos, de a Era dos Editais, uma era em que o edital deixou de ser meio e passou a ser fim. Uma era em que transformamos uma ferramenta em objetivo final. E quando isso acontece, o instrumento começa a governar a política, e não o contrário.

O que vemos muitas e muitas vezes país afora, seja nas capitais ou nos pequenos municípios, é um cenário que mistura correria, improviso, hiper competitividade e uma sensação crescente de esgotamento. Um esgotamento físico e mental. O processo da PNAB escancarou isso de uma forma quase pedagógica. Para dar um exemplo, em meu estado, Minas Gerais, foram mais de dezoito mil inscrições na PNAB. Para a grande maioria dos editais, menos de quatro por cento das propostas foram contempladas. De cada cem, quatro foram aprovadas. Isso não é fomento, é loteria. É escassez institucionalizada. É uma política que funciona, com muita boa vontade, para pouquíssimos e frustra a imensa maioria.

E digo isso com muito respeito aos gestores públicos que estão tentando fazer o possível com ferramentas limitadas e, também, com enorme respeito aos pareceristas, porque conheço bem esse trabalho. Mas a verdade é que o modo como os pareceristas foram incorporados aos editais recentemente revela uma fragilidade estrutural séria. São processos pouco transparentes, critérios pouco precisos, metodologias não compartilhadas, análises feitas em isolamento, sem comissões plurais ou espaços de debate, sem uniformidade mínima. Sem falar na fase de recursos, que costuma ser pouco transparente e nas interferências superiores, que têm sido denunciadas recentemente. É um sistema que gera insegurança, ruído e desconfiança. E quando uma política pública perde a confiança do setor, ela perde quase tudo.

O que se estabeleceu no Brasil foi uma gincana. Gincana desigual e desgastante. O poder público corre para lançar editais, avaliar editais, pagar editais, fechar planilhas. A sociedade civil corre para se inscrever no maior número possível, torcendo para que algum projeto passe. E todos nós vamos repetindo coletivamente uma maquinaria absurda que se retroalimenta e não produz acúmulo. Tudo, ou quase tudo, sem acompanhamento e avaliação de indicadores. Não sabemos o impacto dos editais. Não sabemos o que mudou, o que se fortaleceu, o que se perdeu. Não há avaliação real. Há anos vivemos um ciclo sem memória, sem crítica, sem planejamento. E, portanto, sem futuro.

Talvez o caminho para a revisão profunda que precisamos empreender não esteja em soluções imediatas, mas na capacidade de nos aproximarmos de experiências que já operam fora da lógica da competição permanente. Não se trata de reproduzir modelos, mas, sim, de observar processos que nasceram do acompanhamento contínuo, do diálogo com artistas e territórios, da curadoria como prática cotidiana, da construção de vínculos e de planejamento que não recomeça do zero a cada ano. Temos experiências, no Brasil e fora daqui.

A partir dessa observação, chegamos a uma conclusão: não se trata de acabar com os editais, mas de recolocá-los no lugar certo. Não como centro do universo, mas como um instrumento entre vários. Precisamos de ferramentas híbridas. Precisamos de fundos continuados, políticas plurianuais (de três, quatro, cinco anos), modelos curatoriais, redes de equipamentos, programas de manutenção, equipes qualificadas e planejamento de longo prazo. Precisamos de uma política que ofereça menos aleatoriedade e mais estrutura, menos competição e mais continuidade. E não a maratona de editais.

Arte e Cultura

Gostaria ainda de sublinhar um ponto que, para mim, é importante e se relaciona ao colapso dos editais: a confusão entre arte e cultura. Tratei disto também nos meus artigos. Essa confusão produz efeitos diretos na formulação de políticas. A cultura é território dos modos coletivos de vida, é ritual, transmissão, pertencimento, identidade. A arte é linguagem, forma, invenção, ruptura, espaço de risco, de fabulação, de estranhamento. A arte nasce da ficção e da abstração, a cultura nasce das práticas compartilhadas. A cultura afirma, a arte pode desestabilizar. A cultura guarda, a arte inventa.

Não existe hierarquia entre elas. Mas quando tratamos arte e cultura como se fossem a mesma coisa, quando pedimos que a arte cumpra funções que são próprias da cultura, ou quando submetemos processos artísticos à mesma lógica das ações comunitárias, o resultado é um modelo que sufoca a criação. Criar exige tempo, continuidade, pesquisa, espaços equipados, remuneração profissional e liberdade estética. Criar exige, sobretudo, política pública específica. E isso quase nunca aparece nos editais genéricos que misturam teatro com patrimônio, com expressões religiosas, com quadrilha, carnaval, festa de bairro e barraquinha no mesmo pacote.

Para um país do tamanho e da complexidade do Brasil, isso é ineficaz e, ouso dizer, injusto. O decreto que refundou o Ministério da Cultura já reconhece, em seu texto, que existem duas políticas: a de cultura e a de artes. Mas seguimos agindo como se bastasse colocar tudo dentro da mesma cesta, o que não faz sentido, nem conceitual nem institucionalmente.

Quero aproveitar este espaço para propor algo concreto: que iniciemos, com a liderança do governo federal, um processo urgente de construção coletiva de um novo paradigma para o fomento às artes e para o fomento à cultura no Brasil. Que iniciemos este “estudo e elaboração de propostas”. Precisamos sair desse ciclo exaustivo da gincana da sobrevivência e ter coragem de enfrentar temas que precisam de reinvenção.

Precisamos rediscutir a Lei Rouanet e suas distorções. Precisamos rediscutir a implantação da PNAB, que entra agora em outro ciclo. Temos que discutir essas duas formas de fomento à cultura para não termos um mecanismo para projetos ricos e outro para projetos pobres.

Por fim, precisamos exigir que o Estado, em todas as suas esferas, recupere sua responsabilidade de garantir infraestrutura, continuidade, acompanhamento qualificado e condições reais para que a arte e a cultura floresçam. E exige também que diferenciemos, com coragem e lucidez, o que é arte e o que é cultura, para que cada campo receba o cuidado e a política que lhe são próprios. Só assim poderemos construir um sistema de fomento plural, justo, estruturante e capaz de olhar para o futuro de forma consequente e democrática.

Deixo aqui também, já que falei de democracia, que a cultura e a arte só podem sobreviver de forma saudável em um Estado democrático que respeita os direitos humanos e a cidadania.

 
 
 

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