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Do rumor à síntese: um debate necessário: Encontro Nacional de Políticas para o Teatro

  • Foto do escritor: Marcelo Bones
    Marcelo Bones
  • há 3 dias
  • 7 min de leitura

Marcelo Bones

8 de outubro de 2025

 


Neste artigo, relato meu olhar sobre o Encontro Nacional de Políticas para o Teatro, que aconteceu em Fortaleza, de 9 a 12 de setembro de 2025. É um olhar muito particular: mesmo sendo da sociedade civil, estive diretamente envolvido como organizador. O Encontro foi uma realização da Fundação Nacional de Artes - FUNARTE, que me convidou para fazer a curadoria, a coordenação metodológica e a produção por meio de minha empresa, a Andante - Gestão de Cultura, desafio que logo ganhou a adesão de Ângela Mourão.

É importante começar agradecendo à FUNARTE pelo convite e também reconhecendo a sua ousadia. O Encontro teve uma singularidade: foi um espaço de rearticulação da sociedade civil, nascido de uma convocação pública. À primeira vista, pode soar estranho. Mas, diante da conjuntura e do tamanho da tarefa, faz sentido. Um órgão do Estado chama o campo a se organizar, propor, debater e escrever. Aceitamos o chamado e o convite e fomos trabalhar.

Não nasceu do nada. O que fizemos se apoia numa longa trajetória de movimentos e articulações, muito qualificadas, do teatro brasileiro. Ao longo da minha vida profissional, participei de muitos deles: o Movimento Nacional de Teatro de Grupo em 1991, o Redemoinho nos anos 2000, no qual atuei como conselheiro nacional, a Rede Brasileira de Teatro de Rua, de cuja fundação participei em 2007, os Congressos de Teatro, a ATAC, que ajudei a criar em 2018, o Núcleo de Festivais, a Rede Brasileira de Festivais. Cada etapa deixou marcas, construiu instrumentos e afiou argumentos. É nessa memória coletiva que nos sustentamos para organizar o evento.

Assim, o Encontro não começou com a chegada a Fortaleza. Começou três meses antes. Coloquei-me a campo. Fiz mais de 70 longas conversas individuais e 10 reuniões coletivas. Foi um processo de escuta e de reconhecimento de demandas e, principalmente, de posições. Grifo: foi, sobretudo, uma escuta de posições. Nesses diálogos, apareceu com evidência, o que não se queria, mais do que consensos prontos. Nomear recusas e críticas também abre horizontes.

Com base nessa escuta, pedimos aos participantes, por escrito, uma breve apresentação de sua organização ou do momento político de seu território e também dois pontos, explicados em um ou dois parágrafos, que cada um considerasse fundamentais para constar de um possível documento final. Recebemos 35 contribuições formais. Sistematizamos, dividimos em eixos e, na proposta metodológica, organizamos o trabalho em três grupos. Desse material nasceram 18 pontos, redigidos como proposição inicial, repassados aos participantes antes de chegarmos a Fortaleza. São vozes do processo, que orientaram o debate e serviram de guia para os dias seguintes.

A composição foi representativa e plural. Estabelecemos uma lista diversa de 26 organizações nacionais, estaduais e locais entre associações, conselhos, federações, redes, movimentos, sindicatos e coletivos. Mas não foi um encontro apenas de entidades. Somaram-se artistas, produtores, técnicos, críticos e pessoas com história na militância por políticas públicas para o teatro, incluindo diversas formas de produção e buscando contemplar vários setores da rede produtiva do teatro feito no Brasil. Havia quem estivesse ligado a organizações e quem não estivesse ali representando sigla alguma, mas a própria caminhada. Esse encontro de representações e trajetórias pessoais fez diferença.   

Houve uma “curadoria”, sim. Eu a assumi. Era um recorte. Fosse outro organizador, seriam outras escolhas e outro Encontro. Aceitei a tarefa por entender que minha trajetória me dá legitimidade para conduzir e responder por um método. Com o Encontro em curso, a curadoria se diluiu no coletivo. Era essa a intenção: criar um trilho e, nele, abrir espaço para o conjunto andar.

Em Fortaleza, a sala reuniu 80 participantes presenciais, vindos de todos os 26 estados e do Distrito Federal. Entramos com material preparado, a sala se apresentou e, a partir daí, mergulhamos no debate em três grupos, com tempos para sistematizações e plenárias. O que se escrevia era sempre confrontado pelo todo. O que se propunha pedia texto que pudesse ser entendido por quem não estava ali.

As dificuldades existiram e importam. O processo de convite gerou ruídos. Houve falhas pontuais. Tratamos disso como parte do procedimento. Quem busca síntese política aceita o desconforto e trabalha a favor do resultado.

Quando começamos a pensar a organização deste Encontro, partimos de uma premissa que foi inteiramente constatada ao longo do processo. O setor do teatro não estava desarticulado. Ele estava, na verdade, exausto. Cansado por esperar durante muitos e muitos anos por políticas públicas que fossem de fato robustas e estruturantes. A expectativa criada em relação aos governos sempre foi muito maior do que o que foi apresentado e ofertado por eles. Nesse contexto, a sobrevivência dos projetos artísticos exige um nível tão grande de trabalho e dedicação que a simples existência deles já dá sinais precisos de uma imensa articulação. Fica evidente que o poder público precisa estar mais próximo e mais ativo, buscando soluções realmente inovadoras que estabeleçam uma conexão mais direta com o setor.

Como desdobramento imediato do Encontro, a FUNARTE, a Secretaria da Cultura do Ceará e a Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza assinaram um protocolo de intenções que formaliza uma pactuação entre União, Estado e Município. O texto afirma a prioridade do trabalho continuado de grupos e coletivos, indica alinhamento de programas e instrumentos à Política Nacional Aldir Blanc e cria base para cooperação em continuidade, circulação e condições de trabalho. Não é um gesto apenas simbólico. É um compromisso público que dá lastro para as próximas etapas e para outros territórios. A FUNARTE instituiu ainda um grupo de trabalho composto por participantes do Encontro, com a tarefa de assessorar a própria Fundação na formulação e no acompanhamento de políticas públicas para o teatro, bem como na implementação da Política Nacional das Artes no que toca ao campo teatral.

Ao final dos dias presenciais e depois de longas reuniões virtuais, apresentamos a Carta de Fortaleza. Ela registra as vozes que estiveram na construção. Está disponível no site do Observatório dos Festivais (festivais.org.br).  

É um documento de trabalho, não um enfeite. Pretende orientar escolhas, cronogramas e responsabilidades. Reúne o que o conjunto pôde pactuar e o converte em instrumento operativo. Não apenas registra consensos possíveis; organiza a escuta em uma síntese política capaz de orientar decisões. Explicita problemas, critérios e prioridades, transforma enunciados em diretrizes e cria um vocabulário comum entre diferentes territórios, funções e linguagens. Ao fazêlo, oferece uma base de negociação entre o setor do teatro no Brasil e o poder público, um quadro de referência para escolhas orçamentárias e um roteiro para sair da retórica para o campo das decisões.

Com mais de cinquenta páginas, a Carta de Fortaleza apresenta um mapa do campo e uma arquitetura de ação: fomento continuado, circulação, espaços e equipamentos, formação, condições de trabalho, memória e documentação, diversidade e acessibilidade, governança e participação social. Nomeia problemas, justifica prioridades, sugere caminhos, distribui responsabilidades e indica a necessidade de calendários e critérios de avaliação. Foi escrita para ser usada, corrigida e ampliada pelo próprio setor e pelas gestões com as quais dialoga. A partir dela, cada eixo deve detalhar programas, parâmetros mínimos e prazos, definir responsáveis, pactuar mecanismos de acompanhamento e prever revisões periódicas. O objetivo é que o texto respire no cotidiano das políticas, ajuste rota quando necessário e sustente ações continuadas que façam diferença onde a vida do teatro acontece.

Nos últimos meses, escrevi textos que ajudam a iluminar o contexto em que estamos: sobre o colapso dos editais e sobre a necessária distinção entre arte e cultura. Não foram temas centrais do Encontro, mas atravessaram conversas e prepararam terreno.  

Na minha fala de abertura, homenageei Reinaldo Maia. Ator, dramaturgo, diretor, fundador do Grupo Folias d’Arte na década de 1990 em São Paulo e participante do Manifesto Arte Contra a Barbárie em 1999, Reinaldo foi referência decisiva nas articulações do nosso teatro. Aprendi com ele sobre política e sobre a força da organização coletiva. Partiu cedo, em 2009, de forma repentina. Era duro e doce. Deixou marcas profundas. E, numa lembrança muito minha, o ouvi muitas vezes defender que “organização é paciência com método”: trouxe sua memória como inspiração e agradecimento.

O Encontro chamou para si a responsabilidade histórica de um momento conturbado. Contribui para que o teatro brasileiro se reorganize nacionalmente e reencontre formas de articulação com o Estado nas esferas federal, estadual e municipal. Pede uma agenda política mais precisa e instrumentos que resistam às sazonalidades governamentais.

Ao observar a riqueza dos debates, noto também um desafio que persiste para além do Encontro. Creio que a importância política de se unificar as várias formas de fazer teatro ainda precisa ser mais bem assimilada pelo conjunto do setor. Reunir em um mesmo projeto político artistas independentes, grupos e coletivos, técnicos, dramaturgos, produtores, gestores, realizadores de pequenos, médios e grandes festivais, redes, fóruns e movimentos organizados, sindicatos, federações, críticos, pesquisadores e representantes de teatros distintos e segmentados, transcende a simples necessidade de diálogo. É uma tomada de posição estratégica. Um campo que se apresenta ao poder público de forma pulverizada, com cada segmento defendendo seus próprios interesses, legítimos, porém isolados, corre o risco de ser atendido de forma igualmente pontual e precária. A unificação, portanto, não significa apagar as diferenças que nos constituem. Significa, antes, compreender que a sustentabilidade de cada parte, da menor à maior, do norte ao sul, do centro à periferia depende da saúde, da articulação e da força política do todo.  

E encerro agradecendo novamente à FUNARTE pelo convite e pela ousadia dessa convocação, bem como a todos os interlocutores que sustentaram e contribuíram nesse processo. Agradeço às pessoas que estiveram presentes e que, com paciência, escuta, dedicação, militância e alegria, foram correalizadoras do Encontro. A Carta de Fortaleza organiza, em prólogo, atos e cenas, o que deve ser princípios, frentes de trabalho e prioridades. O que pactuamos exige decisão, calendário, orçamento, responsáveis e acompanhamento público.

Encerramos o encontro!

Agora, o documento precisa viver no mundo real.



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