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Ainda sobre o colapso dos editais: Da Ineficiência à APROXIMAÇÃO de Novos Modelos

  • Foto do escritor: Marcelo Bones
    Marcelo Bones
  • 2 de jun.
  • 10 min de leitura

Atualizado: 3 de jun.

Marcelo Bones 22 de maio de 2025

 



Quando escrevi sobre o que chamei de Colapso dos Editais, muita gente me cobrou – com aquela pressa típica de uma lógica da qual estou tentando me afastar – que minha "crítica" aos editais, como única ferramenta de fomento, só teria serventia se eu apresentasse propostas concretas de alternativa ao modelo. Como disse no texto: "Neste momento, não desejo – e nem tenho condições – de apresentar soluções". Acredito que um debate sério precisa de estrutura e  construção coletiva. Assim, para começar a pensar em alternativas de verdade viáveis, precisamos antes aproximar o olhar de experiências que já operam fora da lógica perversa e predatória dos editais.

A estratégia para mim é essa APROXIMAÇÃO. Afinar os instrumentos, com muita escuta e afinação coletiva, antes de sair tocando qualquer melodia supostamente salvadora. Gostaria de ser explícito sobre o recorte que farei aqui neste texto: vou descrever duas experiências em uma área específica, com características muito particulares: a circulação/exibição/programação do que agora chamamos “artes vivas” (teatro, dança, circo, música). Acredito que a construção coletiva de alternativas às "gincanas" dos editais, muito potencializadas pela Lei Paulo Gustavo e pela Política Nacional Aldir Blanc, passa por aprofundar exatamente as especificidades de diversas áreas, de variadas linguagens específicas. Não existe uma forma mágica que resolva tudo para todos e todas. Precisamos olhar com atenção para alguns modelos que já existem.

Mas antes de adentrar na exposição destes processos, queria começar esta conversa compartilhando uma história, dessas que a gente guarda e remoe. Aconteceu no ano passado, em 2024. Um grupo de artistas de outro estado – sou de Minas – parceiros de profissão e de militância por políticas públicas para as artes há anos – me convidou para assistir a um espetáculo deles que iria se apresentar em Belo Horizonte. Aceitei, com aquele prazer genuíno que vem da amizade e da confiança no trabalho artístico de quem a gente admira. Adianto logo: minha alegria de ir se confirmou. O espetáculo era bom, potente, e o encontro com os amigos foi muito prazeroso.

Mas, quero contar a segunda parte, e faço questão de isentar/inocentar meus amigos de qualquer responsabilidade nesta situação geral. Na plateia, éramos somente cinco pessoas. CINCO PESSOAS. Fiz depois uma daquelas "contas de padeiro", puramente ilustrativas e jamais para precificar um espectador: eles saíram de suas cidades, um dia antes, passaram o dia montando e ensaiando, apresentaram para nós, as cinco pessoas e voltariam no dia seguinte para suas cidades bem distantes de Belo Horizonte. Fizeram uma só apresentação para um público ínfimo. Tentei calcular o custo aproximado daquela operação: equipe de sete pessoas, passagens aéreas, transporte local, alimentação, hospedagem, aluguel do teatro, cachês, divulgação... Chutando uns trinta mil reais para aquela única noite. Me senti um espectador "caríssimo", valendo, naquela matemática estranha, seis mil reais. Óbvio que isso é só uma figura de linguagem; o valor de um espectador, de uma experiência artística, é imensurável. Mas a situação grita!

O fato é que esses amigos estavam ali porque ganharam um edital em seu estado para fazer uma circulação. Eles estavam cumprindo o objetivo do edital. Mas, convenhamos: algo muito sério está errado aqui! E o problema, insisto, não está neles ou no espetáculo e nem diretamente em quem lançou este edital. O problema está na lógica deste sistema.

É a lógica do edital como instrumento único que nos leva a essas situações bizarras, ineficientes e, no fundo, desrespeitosas com o trabalho artístico. A gente se inscreveu em uma gincana de sobrevivência, e o que vemos são, algumas vezes, projetos de circulação que se movem para plateias vazias, cumprindo planilhas e não o objetivo maior de conectar arte e público.

Minha primeira aproximação, então, será olhar para duas experiências que conheço na circulação e programação das artes vivas e que se baseiam fortemente na curadoria, distanciando-se dessa dinâmica competitiva e pontual dos editais tradicionais: o Projeto Palco Giratório do Departamento Nacional do SESC e a forma como o SESC São Paulo constrói sua vasta programação de artes da cena e música em suas unidades. O que podemos aprender com a lógica de curadoria deles?

Certamente nenhuma novidade para muitos, mas entendo importante, explicitar o processo para organizar o debate. Importante aproximarmos de experiências interessantes.

 

SESC NACIONAL: PALCO GIRATÓRIO E A CURADORIA DE CIRCULAÇÃO NACIONAL

Criado em 1998, o Palco Giratório é, para mim, o mais importante projeto de circulação de artes cênicas (teatro, dança, circo) do Brasil. Sua missão é promover o intercâmbio artístico e cultural entre as diversas regiões do país, descentralizar o acesso à produção cênica e estimular a formação de público e artistas. O projeto não opera por meio de um edital aberto e competitivo para a seleção das obras que integrarão a circulação nacional. Pelo contrário, sua estrutura se baseia em um processo contínuo e colaborativo de curadoria coletiva e articulação institucional.

A curadoria do Palco Giratório envolve uma equipe do Departamento Nacional do SESC, frequentemente em diálogo e recebendo proposições e indicações dos Departamentos Regionais (os Sescs em cada estado). Os Departamentos Regionais, por sua vez, possuem suas próprias programações e equipes que acompanham a produção artística local e regional ao longo do ano. São essas equipes regionais, em contato direto com artistas e coletivos de seus territórios, que sugerem espetáculos com potencial para integrar o circuito nacional.

A seleção final dos espetáculos que compõem o Palco Giratório em determinado ano considera uma série de critérios curatoriais que visam garantir a diversidade:

  • Diversidade Geográfica: Representatividade de artistas e estéticas de diferentes estados e regiões do Brasil.

  • Diversidade de Linguagens: Contemplando teatro, dança e circo em suas variadas formas.

  • Diversidade Estética e Temática: Abordando diferentes poéticas, formatos e temas relevantes.

  • Potencial de Circulação: Adequação técnica e logística para itinerar por diferentes espaços e contextos.

  • Relevância Artística: Qualidade estética, originalidade e impacto das obras.

Portanto, o processo curatorial do Palco Giratório é menos sobre "inscrever um projeto" em uma competição e mais sobre ser identificado, acompanhado e proposto pelas equipes técnicas e curatoriais do SESC, em um fluxo que começa nas unidades regionais e culmina na seleção nacional numa reunião presencial de todos os agentes dos Sescs regionais. Esse modelo permite ao SESC Nacional construir uma "vitrine" da produção cênica brasileira, planejada com antecedência e que garante condições profissionais (cachês, transporte, hospedagem, suporte técnico) para as companhias em circulação, algo dificilmente assegurado nos editais pontuais, criticados por mim por sua insistente imprevisibilidade e valores muitas vezes insuficientes.

 

SESC SÃO PAULO: PROGRAMAÇÃO EM TODO ESTADO DE SÃO PAULO

Saindo do circuito nacional do Palco Giratório, mas ainda nessa trilha da curadoria que aponta caminhos para fora da lógica dos editais, vamos "aterrissar" em São Paulo e olhar para a "máquina" de programação das unidades do SESC no estado.

O SESC São Paulo é, sem dúvida, um caso à parte no Brasil e, talvez, no mundo, pela escala, qualidade e diversidade de sua programação cultural espalhada por mais de quarenta unidades pela capital e interior. Diferente do Palco Giratório, que é um projeto anual de circulação de artes cênicas, a programação do SESC SP, incluindo música e artes da cena (teatro, dança, circo, performance), além de várias outras linguagens, é contínua, pulsando o ano inteiro em seus teatros, auditórios, áreas de convivência etc.

Como essa programação gigante, que envolve tantos artistas, linguagens e unidades, é montada? Quem escolhe o quê vai ser apresentado, quando e onde? A resposta curta, e que nos interessa aqui, é: pela curadoria e pelo relacionamento.

Não é por meio de um "editalzão" público único, onde milhares de artistas e grupos submetem projetos para serem ranqueados por pareceristas desconhecidos. O modelo de programação do SESC SP é um processo orgânico, que mistura uma visão mais ampla, com uma autonomia fundamental das equipes que estão no chão de cada unidade e dialogam constantemente com a cena artística.

Existem equipes de programação e curadores no SESC SP – muitas vezes especializados por linguagem ou área de atuação – cujo trabalho principal é acompanhar a produção artística, acompanhar festivais nacionais e internacionais, assistir, escutar, pesquisar e dialogar. A seleção dos shows de música, dos espetáculos de teatro, dança e circo, das temporadas que ocupam os espaços, acontece na esmagadora maioria das vezes por convite direto ou proposição interna dessas equipes. Eles identificam trabalhos relevantes, artistas em ascensão ou consagrados com propostas interessantes, obras que se encaixam nas linhas curatoriais que estão sendo pensadas para as unidades. Eles propõem esses artistas e trabalhos para integrar a programação negociando, diretamente, cachês e condições de apresentação.

Claro que pode haver uma ou outra chamada pontual para ocupação de espaços específicos ou projetos com formatos diferenciados, mas o grosso da programação de música e artes cênicas não passa por um processo de inscrição em edital aberto e competição por pontos. É um trabalho ativo de prospecção, relacionamento e planejamento curatorial.

E o que esse jeito de programar permite, que a lógica dos editais tanto dificulta e que vivenciamos na história que contei?

  • Continuidade e Fluxo: A programação acontece sem parar, permitindo um planejamento de médio e longo prazo, a construção de "temporadas", "ciclos" ou "linhas" de programação que dialogam entre si, em vez de eventos isolados e esporádicos ditados pelos ciclos incertos dos editais.

  • Relacionamento e Acompanhamento: As equipes criam relações de confiança com artistas e grupos ao longo do tempo. Isso permite não só convidar para apresentações, mas também, em muitos casos, apoiar processos criativos, residências, encomendas de novas obras. É uma relação mais parceira do que a meramente burocrática e pontual do edital.

  • Qualidade e Coerência Curatorial: Com equipes dedicadas e com olhar qualificado, é possível construir programações com uma identidade curatorial clara, que arriscam, que trazem diversidade estética, que dialogam com temas contemporâneos, e que não são apenas a soma aleatória de projetos que "pontuaram" bem em uma ficha de avaliação.

  • Profissionalização e Remuneração Digna: Ao convidar e negociar diretamente, o SESC estabelece contratos e cachês que, na média, são muito mais dignos e condizentes com o valor do trabalho artístico do que os valores muitas vezes aviltantes, ou até superfaturados em raros casos, de alguns projetos aprovados em editais.

  • Flexibilidade e Agilidade: Embora haja planejamento, a curadoria permite uma capacidade maior de reação e adaptação para incluir algo relevante que surgiu de última hora, algo que a rigidez dos editais dificulta enormemente.

  • Formação de Público: Uma programação contínua, diversa e de qualidade, aliada a projetos educativos e de mediação, é fundamental para construir e fidelizar público, algo que apresentações isoladas e mal divulgadas (como a dos meus amigos) não conseguem fazer.

Olha só a diferença brutal: em vez da imprevisibilidade e da competição exaustiva dos editais públicos, onde o artista gasta energia concorrendo e muitas vezes recebe valores irrisórios para uma apresentação pontual (cumprindo tabela para o edital, mas com baixo impacto real), o modelo do SESC SP aposta em um fluxo contínuo, em um olhar curatorial ativo, em um relacionamento de longo prazo e na garantia de condições profissionais para a realização da arte.

Este modelo, com sua escala e capilaridade, mostra como é possível construir uma programação cultural rica, diversa e, sim, profissionalizante, quando a curadoria, o planejamento e o relacionamento com o campo artístico são colocados no centro da política cultural, e não a "gincana" burocrática e cega dos editais.

 

CONSIDERAÇÕES SOBRE OS MODELOS E A INFRAESTRUTURA

Evidente que estes dois processos [referindo-se ao Palco Giratório e à programação do SESC SP] certamente não são perfeitos e, certamente, devem ser afeitos a muitas críticas e devem enfrentar muitos desafios internos. Eu também não quero aqui fazer “propaganda” deles. E são experiências no campo da atuação privada, não no campo público. Mas acho importante estudarmos as iniciativas que conseguiram sair desta amarra de edital para tudo, para todos e para todas. São subsídios para pensarmos em saídas mais complexas e mais efetivas.

Estes são projetos, processos que trabalham especificamente na circulação de obras e projetos artísticos no campo das artes da cena e da música. E como tenho dito, enquanto não separarmos processos artísticos de processos culturais, estaremos sempre tratando coisas diferentes como se fossem iguais.

Mas para que modelos baseados em curadoria, planejamento e relacionamento, como os do SESC, ganhem escala e sustentabilidade no campo público, a conversa não pode parar apenas no método de seleção. É fundamental adicionar a dimensão da infraestrutura. O alcance e a potencialidade do Palco Giratório, por exemplo, só são plenamente possíveis porque existe uma rede de equipamentos SESC pelo Brasil, com estrutura mínima para receber os espetáculos. Da mesma forma, a programação contínua do SESC São Paulo vive da força de suas inúmeras unidades, de seus teatros, auditórios e espaços aparelhados. Sem um investimento vultuoso do fomento em manutenção e criação de infraestrutura adequada para apresentações – desde o básico no pequeno município até grandes teatros – continuaremos a ver o sucateamento dos equipamentos públicos (e até privados) e a ter a arte sem lugar digno para acontecer e circular. É preciso que as três esferas de governo – municipal, estadual e federal – ganhem a capacidade de pensar a circulação de obras e projetos artísticos fora desta formatação de editais, o que inclui repensar a própria forma de acesso e ocupação dos espaços públicos já existentes, que muitas vezes, também se dá por editais engessados e ineficientes, nos quais a responsabilidade pelo chamamento do público é entregue aos agentes culturais daquele projeto, que muitas vezes chegam na véspera, sem nenhum vínculo com aquela cidade. Não se trata de um caminho fácil, é trabalhoso e complexo, vai exigir muitos esforços e recursos. Mas é possível. Passa por organizar e fortalecer os equipamentos e espaços de apresentação já existentes, criando redes, inventando, incentivando, apoiando e financiando colaborações entre eles, buscando talvez até uma "identidade" de rede que faça sentido artístico e logístico. Mas aprofundar o como criar e sustentar essas redes de equipamentos colaborativos, e as políticas públicas para isso... bem, isso fica para um próximo texto, que já se anuncia necessário.

 


 

Um Projeto de Futuro

Chegamos, eu aqui, ao fim desta primeira "aproximação", olhando para experiências que ousaram sair da "amarra dos editais" e construir lógicas de seleção e circulação baseadas na curadoria e no relacionamento. O que as experiências do SESC nos mostram, especialmente em sua base curatorial e de programação contínua, é que fomento à arte (e essa distinção importa!) exige continuidade, olhar especializado, planejamento de longo prazo e, fundamentalmente, respeito ao trabalho do artista, com remuneração profissional e condições dignas de realização. Não se trata de idealizar um modelo (o SESC tem suas próprias complexidades e seu financiamento é privado), nem de simplesmente transplantá-lo para o setor público, que tem outras regras e fontes. Trata-se, sim, de entender que a lógica da curadoria ativa, do relacionamento contínuo, da remuneração profissional e da construção de programações coerentes são alternativas concretas à aleatoriedade, à competição predatória e à precarização geradas pelo edital como via única e salvadora. Antes dos mais apressados dizerem que já sabiam de tudo isto, creio importante pensar em como vamos elaborar propostas mais complexas, mais potentes, diferenciadas e capazes de dar respostas a este diagnóstico sobre o esgotamento dos editais como única ferramenta de fomento.

Nossa "gincana" atual da PNAB, apenas cumpre tabela burocrática, como na história dos meus amigos, sem construir pontes sólidas entre arte, artistas e público, sem gerar acúmulo real para o campo. É urgente que o poder público e a sociedade civil – juntos, em um debate de escuta e construção coletiva – tenham a coragem de olhar para além do modelo falido e concebam políticas de fomento que sirvam, de fato, a um projeto de futuro para as artes e a cultura brasileiras. Estamos só no início dos ciclos da PNAB e precisamos refletir sobre seu desdobramento. A "gincana" tem que acabar. O projeto de futuro precisa começar.

 

O primeiro artigo, COLAPSO DOS EDITAIS E A URGÊNCIA DE UM NOVO MODELO DE FOMENTO – 29/abril/2025, está no link bit.ly/ColapsoDosEditaisMarceloBones

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