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  • Michele Rolim

Pensamento curatorial em processo


"O Caranguejo" integrou a programação do Festival Internacional de Londrina - Filo 2016

Foto: Elisa Mendes


A função do curador na área de artes cênicas parece, para muitos, incluindo os próprios curadores, imprecisa. Apesar da multiplicação de festivais e mostras de artes cênicas, o termo curadoria ainda é polêmico e está em construção. Na etimologia da palavra, “curare” significa cuidar. O termo é utilizado amplamente nas artes visuais. Para o professor e crítico de arte Roberto Teixeira Coelho (2012), originalmente designava o processo de organização e montagem da exposição pública de um conjunto de obras de um artista ou conjunto de artistas.


Atualmente, para ele, houve uma alteração sensível na função do curador, que ocorreu a partir do momento em que lhe foi concedida ou reconhecida a tarefa de determinar o tema inspirador de uma exposição e de selecionar artistas e obras segundo essa escolha. Acrescentaríamos a isso que, na contemporaneidade, a curadoria, independentemente da área, também envolve estabelecer uma relação entre os trabalhos e evidenciar essa relação para o público.


A palavra curadoria passa a ser empregada nas artes cênicas no Brasil a partir da expansão dos festivais e mostras, que surgem, de forma esporádica, no final da década de 1950; e durante a ditadura militar (1965-1985), como forma de resistência ao regime, a exemplo do Festival Internacional de Londrina (Filo) e do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto. Aflorando mais iniciativas depois da década de 1990, graças à criação de mecanismos que movimentaram a produção cultural, como a Lei Rouanet, além de leis municipais e de instituições voltadas à área teatral.


O curador de um festival (também chamado de diretor artístico) não age de forma isolada: ele se insere em um sistema de relações e de poder, dentro de um contexto histórico, social, político, cultural e econômico.


Deve-se levar em consideração, portanto, as características e particularidades de cada evento para compreender por onde passam as escolhas curatoriais. O território também deve ser pensado, desde o espaço físico (urbano ou rural) até as interações sociais e culturais das comunidades que o habitam ou o visitam. Um festival acaba movimentando a economia da cidade que o acolhe, portanto, o lugar e o contexto onde ele acontece são determinantes no desenvolvimento e na potencialidade do evento.

"(A)Polônia, do grupo Nowy Teatr integrante da programação da MITsp 2016

Foto: Divulgação

A titularidade dos festivais pode ser pública, realizada em sua maioria pelas prefeituras, aliadas a patrocinadores privados; ou pode ser privada, não contando, portanto, com o orçamento do município e sim com patrocinadores. Em ambos os casos, os patrocinadores, na sua maioria, se utilizam de mecanismos públicos de incentivo à cultura para financiar o festival, como a Lei Rouanet. No Brasil, a Petrobrás, cujo principal acionista é o Governo Federal, começou a patrocinar os festivais de forma mais efetiva a partir de 2004.


No que diz respeito à organização – conceber, planejar e montar um festival – há demanda de trabalho em equipe, com pessoas de diferentes formações e experiências. E, é claro, o orçamento é parte determinante.


Além disso, há o que o curador detém, ou deveria deter, seu foco: o projeto artístico do festival, que inclui a linha curatorial da mostra, ou seja, o conceito que será adotado para a escolha de obras, grupos e diretores. Também fazem parte as atividades formativas voltadas aos artistas e à comunidade em geral. É por meio do projeto artístico que o público poderá conhecer espetáculos que normalmente não são oferecidos em uma programação regular. Além disso, alguns projetos curatoriais abrangem a coprodução de espetáculos, fomentando a criação e a produção locais.


Segundo o diretor do programa de doutorado em gestão da cultura e do patrimônio da Universidade de Barcelona, Lluís Bonet (2011), um festival se estrutura basicamente em dois modelos: o de gestão e o artístico. O primeiro é uma combinação de estratégias que abarcam desde o financiamento, o marketing, a cultura organizativa e os recursos humanos, até o controle de custos e orçamento, a preocupação com a formação de públicos e a capacidade de estabelecer parcerias, de se inserir em redes de colaboração e de gerir a reputação e o patrimônio simbólico. O responsável pelo modelo de gestão é chamado de diretor-geral ou coordenador-geral do festival – sabe-se que as nomenclaturas neste campo ainda estão em construção.


Já o modelo artístico envolve a proposta curatorial, que dará origem à programação do festival. Bonet (2011) assinala que o grau de independência para tomar decisões é relativo. Muitas delas resultam da articulação entre escolhas subjetivas e as demais influências de agentes com capacidade de pressão, tais como a própria organização do festival e os patrocinadores, mídia, entre outros.


O impacto do projeto artístico com o modelo de gestão do festival, e vice-versa, depende, em boa medida, do tipo de diretor artístico. Em sua tipologia, Bonet (2011) vai chamar de “puro” o curador que não tem vínculo com o festival; desse modo ele é contratado somente para realizar a curadoria.


Podemos encontrar no Brasil diversos perfis de curadoria. Existem festivais em que o coordenador-geral também é curador do festival. É o caso do Porto Alegre Em Cena: Luciano Alabarse assina a curadoria nacional e internacional em uma tarefa solitária; apenas a programação local é selecionada por um conselho curatorial.

"As ondas ou uma autopsia" integrou a programação do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto 2016 | Foto: João Caldas

Em certos festivais, o coordenador-geral divide a função com outro curador ou com um conselho. No Filo, por exemplo, a coordenação-geral é assinada por Luiz Bertipaglia que também compartilha a curadoria com Paulo Braz.

Noutro modelo, o diretor-geral e o curador têm funções distintas: cada um assume uma tarefa. É o caso da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp: quem assina a direção-geral é Guilherme Marques e a direção artística, Antônio Araújo. No entanto, ambos são os idealizadores do evento.


Finalmente, temos o caso em que o conselho curatorial é contratado especificamente para esse trabalho. Na edição de 2016 do Festival de Teatro de Curitiba, Leandro Knopfholz assinou apenas a direção–geral e a curadoria ficou a cargo do ator e diretor Guilherme Weber e do diretor Marcio Abreu. A dupla substituiu o produtor e administrador cultural Celso Curi, a jornalista e gestora Lucia Camargo e a crítica e pesquisadora Tânia Brandão, trio há muitos anos à frente da programação. Na curadoria em artes visuais, encontraremos, como regra geral, este último perfil.


Quando o curador se responsabiliza somente pelo modelo artístico, os eixos curatoriais do festival tendem a ser mais claros e a ter um recorte mais específico. Por outro lado, quando a curadoria e a coordenação competem apenas a uma pessoa, o festival tende a se tornar personalista. Segundo o jornalista, crítico e curador Kil Abreu, é bom quando o curador está à frente apenas do modelo artístico: “As tarefas são divididas, e, ao menos do ponto de vista do pensamento artístico, o curador fica mais protegido das intempéries de produção, que são sempre difíceis de contornar”.


Soma-se a isso a maneira como ocorre o processo seletivo. Temos, como regra geral no Brasil, dois processos seletivos: um deles dá total autonomia ao curador (sem inscrições prévias de espetáculos) e o outro predetermina, de alguma maneira, o universo de escolhas do curador (com inscrições e convidados).


Há também discussão em torno da formação e trajetória desse profissional: o curador deve corresponder a um gestor cultural? Qual seria o modelo ideal de formação e de trajetória de um curador? Normalmente os curadores de festivais de artes cênicas são artistas, jornalistas ou críticos. A partir da análise desses elementos, é possível compreender melhor por onde passam as escolhas dentro de um sistema complexo e dinâmico como o das artes cênicas.

"Corpo sobre tela" integrou a programação do Festival Internacional de Londrina - Filo 2016

Foto: Gal Oppido e Eduardo Knapp

No atual momento, há diversos pensamentos pairando sobre a cena das mostras. Para o diretor e curador Marcelo Bones (2015), existe uma espécie de crise dos festivais. A questão importante localiza-se na pouca clareza conceitual de vários desses eventos. “Os festivais, hoje, já não podem se contentar em ser apenas uma coleção de bons espetáculos”.

Como exemplo desse “conceito” – ou, como podemos chamar, desse “pensamento curatorial” mais consolidado –, citamos o festival que, a meu ver, mais bem consegue desenhar esse pensamento: a MITsp, cujo modelo artístico é assinado por Araújo, diretor do Teatro da Vertigem. Ele se vale da sua ideia de “núcleo vibratório” (no qual haveria mais de um tema na mostra, mas com um diálogo entre eles) para oferecer ao espectador um discurso que relaciona as montagens, este explicitado inclusive no texto do catálogo da edição.


É claro que, além de Araújo se dedicar somente ao modelo artístico, e de a mostra não abrir para inscrições de espetáculos, outra razão pela qual ele consegue efetivar sua proposta é o fato de trabalhar com um número reduzido de obras na grade de programação: cerca de dez por edição. Isso facilita as conexões e permite ao público assistir a boa parte dos espetáculos. Mas seria esse o modelo ideal para o contexto brasileiro?


Tendo em vista as diferenças de natureza dos festivais, em termos de territórios que os abrigam e de desenvolvimento do pensamento curatorial, podemos dizer que também existem bons festivais sem um recorte curatorial. No entanto, a tendência que se desenha é a de adotar um modelo o mais próximo possível deste, ou seja, de passar a construir mostras a partir de um conceito e não com base em um grande número de espetáculos.


.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.


O texto foi originalmente publicado no site Teatrojornal no dia 10 de outubro de 2016



Referências:

BONES, Marcelo. A MITsp e um pensamento sobre festivais de teatro. Observatório dos Festivais, 15 mar. 2015. Disponível em: <http://www.festivais.org.br/#!O-Observat%C3%B3rio-acompanhou-a-MITsp-e-lan%C3%A7a-reflex%C3%B5es-sobre-os-formatos-e-curadorias-de-festivais/c3v9/55060c8e0cf2031a763d8e9a>.

BONET, Lluís. Tipologías y modelos de gestión de festivales. In: BONET, Lluís; SCHARGORODSKY, H. (Ed.). La gestión de festivales escénicos: conceptos, miradas y debates. Barcelona: Gescènic, 2011. p. 41-87.

COELHO, Roberto Teixeira. Dicionário crítico de política cultural: cultura e imaginário. São Paulo: Iluminuras, 2012.

ABREU, Kil. In: ROLIM, Michele Bicca. Pensamento curatorial em Artes Cênicas: interação entre o modelo artístico e o modelo de gestão em mostras e festivais brasileiros. 2015. 158 f. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) – Programa De Pós-Graduação em Artes Cênicas, Instituto de Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015.



Michele Rolim: Jornalista, pesquisadora e crítica teatral. Mestra em Artes Cênicas (UFRGS) e graduada em Jornalismo (PUCRS). Desenvolve pesquisa sobre curadoria em festivais de artes cênicas. É a repórter responsável pela cobertura de teatro e de dança no Jornal do Comércio, em Porto Alegre (desde 2010). Participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da Prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival internacional Porto Alegre Em Cena. É coeditora do site nacional Agora Crítica Teatral (www.agoracriticateatral.com.br) e membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro, AICT-IACT (www.aict-iatc.org), filiada à Unesco. Atuou como crítica e debatedora em diversos festivais de artes cênicas brasileiros.


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