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  • Marcelo Bones

Um Olhar sobre os Festivais


Um Olhar sobre os Festivais

Marcelo Bones


Primeira premissa: se os festivais cênicos não existissem, teriam que inventá-los. Segunda premissa: aqui e agora, depois de mais de uma década de travessia do novo século, falta uma reflexão profunda sobre os discursos que possibilitam a sustentabilidade e a renovação de que os festivais precisam para continuar servindo ao entorno cidadão para o qual foram criados. (Guilhermo Heras)

Os festivais de maneira geral, em suas múltiplas possibilidades de manifestações, têm presença nos primórdios da humanidade sempre ligados a rituais e celebrações. Etimologicamente a palavra Festival procede do latim festivus, ideia de festa e festividade. Podemos convencionar que as celebrações a Dionísio, na Grécia, tenham sido os primeiros festivais culturais da história.

Tentaremos aqui abordar os festivais específicos de teatro e podemos defini-los como uma sequência de apresentações cênicas acrescida de atividades correlatas como oficinas, debates, entre outras, sempre demarcada em um período de tempo e em um determinado território. Podemos pontuar que este conceito foi fortalecido com o nascimento de dois emblemáticos festivais ocidentais: o Festival de Avignon, na França, e o Festival de Edinburgh, no Reino Unido. Os dois surgem no mesmo ano de 1947 e com um impulso comum: aglutinar artistas e contribuir para a reconstrução da Europa depois da Segunda Guerra Mundial. Assim, creio, já podemos colocar uma importante camada à reflexão sobre os festivais: além de sua importância artística e de serem uma mostra de espetáculos, os festivais trazem, em sua origem, dimensões sociais e políticas.

O desenvolvimento e a expansão dos festivais se espalham pela Europa e chega à América Latina já apresentando este novo modelo referenciado nos dois festivais europeus: espetáculos, atividades paralelas, reflexão social e política, concentração de público, celebração e a conformação de um certo hiato na vida das pessoas. Manizales, cidade localizada na zona cafeeira da Colômbia, tem seu festival criado em 1968 e é o festival internacional mais antigo na América Latina ainda em atividade, tendo realizado em 2016 a sua 38a edição. Outra importante referência foi o Festival Internacional de Teatro de Caracas, criado pelo argentino Carlos Gimenez em 1971, que contou ao longo de suas edições com a participação dos mais importantes criadores de teatro do mundo. No Brasil, em 1958, a importante artista militante do movimento modernista brasileiro, Patrícia Rehder Galvão, a Pagu, com a colaboração de Paschoal Carlos Magno e o então jovem ator Plínio Marcos, realizou o Festival Santista de Teatro (Festa), de caráter nacional e o mais antigo festival ainda em funcionamento no país.

Nas décadas de 1960 e 1970 os festivais tiveram em toda a América Latina um papel fundamental na aglutinação e resistência às ditaduras militares que se espalharam pelo continente, e também no Brasil este enfoque político combativo se deu de maneira intensa. Dois importantes festivais surgidos nesse contexto político efervescente da década de 1960 e ainda em atividade nos dias de hoje merecem destaque: o Festival de Teatro de Londrina (FILO) — até 1990 se chamava Festival Universitário de Londrina — e o Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto (FIT-SJRP) — até 2001 se chamava Festival Nacional de Teatro. Ambos tiveram início quase que simultaneamente, o primeiro em 1968 e o segundo em 1969, iniciando como festivais estudantis e amadores e foram, ao longo de sua trajetória, amadurecendo, incorporando a produção profissional nacional e posteriormente se transformando em festivais internacionais, o FILO em 1988 e o FIT-SJRP em 2001.

Nas décadas de 1970 e 1980 podemos acompanhar um movimento de criação e descontinuidade de muitos festivais pelo país. Por sua importância, cito o Festival Internacional de Artes Cênicas de São Paulo, criado pela atriz e empreendedora cultural Ruth Escobar, que com suas nove edições, de 1974 a 1999, influenciou fortemente o mundo teatral paulista e brasileiro.

Mas, é interessante constatarmos que foi principalmente nos anos 1990 que assistimos a um forte movimento de criação dos grandes festivais brasileiros que estão em atividade até hoje. Sem aprofundar, atribuiria este fenômeno a uma efervescência cultural provocada pela redemocratização do país, incitando um desejo de conhecer outros movimentos teatrais tanto nacionais como internacionais, bem como a criação de novos modelos de financiamento a eventos culturais, destacando, entre eles, a Lei Rouanet, implantada em 1992. Entre os festivais que surgiram nesse movimento e estão até hoje em atividade podemos citar: Festival de Curitiba e Porto Alegre em Cena (1992), Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga e Festival Nacional de Teatro Isnard Azevedo, atualmente denominado Floripa Teatro (1993), FIT – Festival Internacional de Teatro de Belo Horizonte e Janeiro de Grandes Espetáculos (1994), Cena Contemporânea de Brasília (1995), Riocenacontemporanea, que de alguma maneira se transformou no Tempo_Festival (1996), Palco Giratório – Sesc (1998 surge o circuito de espetáculos e em 2003 realiza seu primeiro festival em Brasília) e Festival do Teatro Brasileiro (1999). É interessante salientar que também na América Latina, os três maiores festivais ainda em atividade foram criados nessa década ou muito próximo a ela: Festival Ibero-americano de Bogotá (1988), Festival Internacional de Santiago do Chile (1994) e FIBA — Festival Internacional de Teatro de Buenos Aires (1997).

Nesse grande panorama dos festivais de teatro é interessante relatar o surgimento, nos anos 2000, de algumas iniciativas importantes para a organização, solidificação e articulação dos festivais em nosso país. Em 2003, fui convidado para dirigir a edição do FIT BH de 2004 e, dentro das atividades de preparação, organizamos um seminário sobre festivais internacionais de teatro. A partir desse encontro foi criado o Núcleo dos Festivais Internacionais de Artes Cênicas do Brasil, formado pelos seguintes festivais: POA em Cena (RS), FIT-BH (MG), FIT de São José do Rio Preto (SP), FILO de Londrina (PR) e o Riocenacontemporânea (RJ), sendo que este último terminou em 2008. Posteriormente, quatro outros festivais vieram a se integrar ao Núcleo: Cena Contemporânea (DF), Tempo_Festival das Artes (RJ), FIAC (BA) e Janeiro de Grandes Espetáculos (PE). Desde então, o Núcleo vem atuando na promoção do debate sobre políticas públicas para festivais e realizando projetos artísticos comuns como coproduções etc.

Em 2013 surgiu o Observatório dos Festivais, organização voltada para a pesquisa, informação e reflexão sobre os festivais de teatro no Brasil, do qual sou mentor e um dos realizadores. Através do sítio www.festivais.org.br, o Observatório apresenta uma listagem dos principais festivais de teatro do Brasil, com suas datas de realização, endereços, contatos etc. Publica também artigos reflexivos em português e espanhol e notícias e resenhas de festivais visitados por sua equipe. O Observatório tem também uma página no Facebook e é promotor e colaborador de encontros e eventos, cujo tema são festivais de teatro. Outra atividade do Observatório é a realização de cursos sobre circulação nacional e internacional para produtores, grupos e companhias de artes cênicas.

Outra iniciativa de organização dos festivais aconteceu em 2015 no processo de construção da Política Nacional das Artes proposta pela Funarte/Minc da qual fui consultor/articulador. Foram realizados vários encontros e seminários para discussão das políticas públicas para os festivais e sua sustentabilidade, e desta articulação surgiu informalmente a Rede de Festivais, composta hoje por aproximadamente 40 festivais de todo o Brasil, incluindo os participantes do Núcleo.

Infelizmente, ainda hoje, mesmo com a complexidade, o aumento do número de festivais no Brasil e sua importância artística e econômica, temos um deserto quando se trata de informações e indicadores sobre esses eventos. Não sabemos de forma sistemática nem mesmo quantos são, como se distribuem no território brasileiro e seus impactos artísticos e econômicos. Numa ação articulada entre o Observatório e a Rede de Festivais, com o apoio do Grupo de Economia da Cultura do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais, está sendo realizado um trabalho inédito de mapeamento e um primeiro estudo com levantamento de indicadores e impactos na circulação de espetáculos e no desdobramento artístico e econômico dos festivais. Este estudo, que está ainda em processo de coleta de dados, fará um mapeamento e levantamento dos indicadores dos festivais realizados no ano de 2016. Mesmo sendo um ano muito difícil, com forte redução orçamentária e até mesmo o cancelamento de alguns importantes festivais brasileiros, esses indicadores já demostram a força e potencialidade desses festivais. Mesmo neste ano de 2016 os orçamentos dos festivais movimentaram mais de 30 milhões de reais e alcançaram um público superior a um milhão de pessoas. Foram mostrados nesses circuitos mais de 100 espetáculos diferentes e se apresentaram mais de 80 companhias internacionais. São números ainda não concluídos, mas que mostram a robustez dos festivais e apontam sua importância, tanto artística como econômica. O levantamento desses indicadores é fundamental para que sociedade, artistas e poder público compreendam a importância que os festivais de teatro têm e e o impacto positivo que promovem, e a necessidade urgente de construirmos uma robusta política pública direcionada a este setor.

Se perguntarmos se os festivais são importantes, a resposta imediata é óbvia: claro que sim. Apesar dos poucos estudos, a importância dos festivais é concreta e sentida com clareza pelos produtores, artistas e público. São importantíssimos, em diferentes abordagens:

São elos fundamentais na cadeia de circulação e fruição da produção teatral.

São espaços privilegiados de inovação e difusão de vanguarda artística.

Têm forte capacidade de formação de profissionais técnicos e artísticos.

Cumprem função importante na formação de público e plateias.

Têm importante impacto econômico na cadeia produtiva da cultura no território onde acontecem.

É importante destacar o papel fundamental desempenhado pelos festivais na circulação de espetáculos e, para isso, é interessante refletir como se dá, institucionalmente, a circulação teatral no Brasil. Porém, podemos afirmar de maneira assertiva que apesar da ação dos festivais neste sentido, o diagnóstico que temos da circulação de espetáculos no Brasil é que ela não reflete a diversidade nem da nossa produção, nem da dimensão territorial. É frágil em todos os sentidos e se dá de forma precária e incompleta. Creio que vale a pena apontarmos alguns gargalos nesta circulação artística no território brasileiro. Em primeiro lugar, é importante constatar que temos uma ausência histórica de políticas públicas para a circulação de nossa produção. Não encontramos programas consistentes e duradouros que promovam a mobilidade das obras teatrais em nenhuma das três esferas de governo. No governo federal, basicamente a única ação para a circulação é o Edital Myriam Muniz, da Funarte/Minc. Só para temos uma ideia da limitação deste edital, em 2015 se candidataram 1.620 projetos, sendo que este prêmio contemplou um total de 52, sendo somente 26 específicos de circulação. Fica clara assim a fragilidade de um edital que consegue atender somente a 3,2% dos projetos inscritos. Outro aspecto é que não temos também políticas públicas ou programas de atendimento aos teatros e às salas de apresentação no Brasil. Diferentemente de outros países, não existe nenhuma política continuada para programação e qualificação técnica de teatros públicos ou privados. Para citar dois exemplos vindos daqui de perto, podemos apontar o Instituto Nacional de Teatro da Argentina com as linhas de subsídios para programação de teatros e, em alguns casos, para a compra ou construção de salas para o teatro independente, ampliando fortemente no país a rede de circulação. Outro exemplo é o Ministério da Cultura da Colômbia, que desenvolve o extenso Programa Nacional de Salas Concertadas que atende aos teatros e salas de exibição teatral em seus diversos formatos e tamanhos com recursos para a manutenção, qualificação e, principalmente, para a programação.

Outro gargalo é a inexistência de uma organização sistêmica federativa de responsabilização entre as várias instâncias de gestão pública (municipais, estaduais e federal) sobre o papel de cada uma na cadeia produtiva do teatro e em específico na responsabilização sobre a circulação dos espetáculos teatrais. Também no setor privado e em empresas estatais, existem alguns projetos interessantes, mas que não se mostram eficientes em apresentar uma política global de circulação. Nesse contexto, não podemos deixar de chamar a atenção para uma iniciativa positivamente exemplar: o Palco Giratório realizado pelo Departamento Nacional do Sesc, que considero o mais eficaz programa de difusão e intercâmbio do país, baseado numa rede de salas e teatros descentralizados, curadoria cuidadosa e acúmulo de expertise do trabalho cultural do Sesc em todo o Brasil, promovendo intensa, descentralizada e contínua circulação em todo o país. Assim, diante deste quadro geral negativo da circulação no país, chegamos a uma situação de responsabilização, quase que exclusiva, aos festivais pela circulação do teatro brasileiro, sem, no entanto, a existência, em contrapartida, de uma política pública específica para os mesmos.

Outra observação interessante de apontarmos é o papel quase que único que os festivais desempenham na apresentação de espetáculos internacionais. Além do Brasil ter uma participação muito pequena na cena internacional (escrevi texto sobre o assunto publicado em www.festivais.org.br), temos também um reduzido trânsito de espetáculos estrangeiros em nosso território. Excetuando poucas capitais, a realidade é que o fluxo de espetáculos internacionais se dá, quase que exclusivamente, através dos festivais.

Acredito que para finalizarmos esta abordagem, mesmo que incompleta e parcial, devemos contemplar também alguns pontos de tensão quando pensamos nos festivais de teatro e nas críticas que recebem. Tentarei levantar algumas questões como impulso para aprofundar o debate e clarear melhor a função dos festivais em nossos contextos artísticos e sociais. Uma crítica sempre constante e muitas vezes pertinente, geralmente feita pelos artistas, é que os festivais, ao longo dos anos, deixaram de ser um lugar de fricção artística e política dos fazedores teatrais, transformados em “festivais boutiques”. Creio que em muitos casos isto verdadeiramente aconteceu, mas devemos reconhecer também que existe de maneira mais geral um certo esvaziamento dos encontros, debates e atividades formativas dos festivais. Por outro lado, também os festivais, na medida em que vão se tornando organizações mais complexas e maiores, encontram dificuldades de abrigar elencos por muito tempo durante a sua realização. Acredito que é possível e importante buscarmos este equilíbrio, tendo sempre como foco principal o público mas criando possibilidades para o intercâmbio entre os artistas.

Outro aspecto comum de tensão é que os festivais, em muitas circunstâncias, têm um poder maior na sedução à imprensa, patrocinadores e gestores, frente a outras atividades artísticas regulares, fazendo com que muitas vezes sejam responsabilizados pelos poucos recursos investidos nas políticas públicas do dia a dia de artistas e cidadãos. Assim, aparece uma contraposição entre o caráter de evento, que tem mais recurso, em detrimento ao que é permanente. Creio ser uma falsa dicotomia pois os dois aspectos são fundamentais e necessários. Devemos lutar por políticas públicas robustas e perenes, e nelas incluir os festivais com seu caráter especial de festa, celebração e concentração artística.

Os festivais também foram afetados na sua capacidade de trazer as grandes novidades do mundo teatral. Antes, os espetáculos circulavam menos, as pessoas viajavam com menor intensidade e não dispúnhamos de tantas informações sobre o que estava sendo produzido fora de nosso universo. Os festivais eram, então, lócus privilegiado para a apresentação dessas novidades. Com as facilidades para a circulação de informações como a internet, vídeos, expansão da circulação de conhecimento pelas universidades, entre outros fatores, essa função “novidadeira” dos festivais se relativizou.

Por onde tenho passado, em palestras, cursos e debates, tenho conversado sobre a minha inquietação a respeito da necessidade de aprofundarmos o debate sobre as funções dos festivais. Cada vez fico mais convicto de que, se existe toda a potencialidade e importância dos festivais, também se faz presente uma crise, que acredito que seja salutar. Creio que cada vez mais um festival não pode ser somente uma coleção de bons espetáculos, mas, sim, se apresentar como construtor de um discurso, enraizado na comunidade na qual está inserido e com a consciência de seu carácter político e social. Os festivais também devem deixar de ser simplesmente exibidores e começarem a provocar e induzir a cena teatral através de projetos e coproduções, financiando idealizações inéditas, artistas novos, propostas ousadas de criações entre diretores e companhias.

Certamente teremos então uma contribuição ainda mais efetiva dos festivais na cidadania e na potencialização da cena teatral e poderemos desenvolver mais e mais este importante instrumento de difusão, intercâmbio e formação que são os festivais de teatro.



1994, num final de outono, em Belorizonte

Em dois de junho de 1994, a cidade de Belo Horizonte é surpreendida no final da tarde por homens pintados de azul, acompanhados por um trio elétrico executando rock’n’roll pesado e um enorme cachorro metálico e fumegante. Estes seres “quase extraterrestres” sobem em marquises e prédios, acendem luzes de fogos de artifícios, rolam ruidosamente tambores pela principal avenida da cidade, conduzindo e arrastando uma pequena multidão inebriada e deliciosamente assustada até a Praça da Estação. O clímax se completa com a grande explosão de uma pirâmide de mais de cem tambores, produzindo catarse e emoção sem igual.

Assim foi a abertura do primeiro FIT BH – Festival Internacional de Teatro de Belo Horizonte Palco e Rua com o grupo teatral francês Générik Vapeur, que com seu espetáculo Bivouac eletrizou um público admirado, maravilhado, ensandecido. Estreou-se assim um dos mais importantes festivais do teatro brasileiro e também, para muitos, um outro entendimento da potencialidade do teatro e de um festival: a capacidade de impactar e transformar o dia a dia das pessoas. Esta abertura e edição inaugural criaram uma sinergia entre a cidade e o festival, fazendo com que ele fizesse parte do imaginário de todos e que a população se apropriasse dele como um patrimônio importantíssimo da cidade.


Publicado originariamente em: Palco Giratório: circuito nacional. Rio de Janeiro: Sesc, Departamento Nacional, 2017. p. 22-27. Catálogo


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