Palcos vazios, apartamentos apinhados: curadoria performativa das artes performáticas


Editora: Alexander Verlag. Imagem: deufert&plischke, B-Visible, Kunstencentrum Vooruit 2002.
PHOTOGRAPHY: FLORIAN MALZCHER
Vamos começar com uma imagem: duas, três pessoas, solitárias, espalhadas por volta da meia-noite em um auditório art déco do teatro Vooruit em Gent. Recostadas meditativamente em seus assentos de pelúcia sob balcões e ornamentação duvidosa, elas observam em silêncio o palco semiaceso abaixo das letras douradas brasonadas no proscênio como uma legenda: “Kunst veredelt” (“arte enobrece”). No palco em si, nada além de beliches. Algumas pessoas dormem; uma está roncando, outra somente se despindo.
Os coreógrafos alemães Kattrin Deufert e Thomas Plischke colocam este espetáculo improvável, modesto, no centro de seu projeto curatorial B-Visible, um programa que consiste de performances, palestras e outras intervenções espalhadas à larga ao longo de 72 horas. Ocorrem em todos os lugares do teatro – exceto em seu coração, o palco principal, o centro de atenção por definição. Aqui ele está completamente silencioso, um refúgio para quem quer que deseje fazer uma pausa.[i]
B-Visible define uma possível compreensão de curadoria nas artes performativas como algo diferente de somente programar os espetáculos da temporada. A forma como até mesmo espaços de teatro clássicos podem ser desafiados ao serem abordados e confrontados em sua especificidade – e dentro de convenções de tempo. Utilizando suas limitações como atritos produtivos (e em relação à arquitetura: usando lógica reversa) e ao mesmo tempo levando-os radicalmente a sério (em termos de tempo: afinal, teatros são construídos para manter a vida diária afastada, então por que também não ignorar completamente o tempo real do mundo lá fora?).
Deufert&Plischke tocaram exatamente neste elemento central do teatro – criando a experiência de uma comunidade temporária em relação ao tempo e ao espaço – usando-os como seus principais recursos de curadoria. Há muito mais a ganhar do que a maior parte dos programas de festivais ou temporadas de espetáculos oferece para nos satisfazer.
“Diaghilev, o curador mais importante do século 20”
Se o termo curadoria – obviamente emprestado das artes visuais – é a melhor escolha no contexto das artes ao vivo é passível de discussão. Mas dentro do campo das artes performativas a que me refiro (um teatro que se recusa a ser definido pelos limites do drama, das divisões convencionais entre representação teatral e público, das impostas limitações de gênero, um teatro que antes de tudo se encontra fora das estruturas fixas e das estéticas relativamente fixas dos teatros de repertório da cidade ativos principalmente dentro dos limites de seus próprios países e idiomas) ele pode ser apropriado. Termos, conceitos e definições são um aspecto problemático seja lá como for: já a questão de como nomear o gênero (artes performativas, teatro experimental, teatro pós-dramático, teatro colaborativo, artes de palco, dança conceitual etc. etc.) é tema de grande controvérsia. O motivo pelo qual eu acho salutar promover o conceito de curadoria neste playground estético altamente questionado é precisamente devido às expectativas que ele desperta: expectativas que propõem um desafio claro para todos que se denominam curadores. Essa distinção não visa badalos ou prestígio, mas objetiva uma mudança na compreensão das possibilidades e pretensões de uma programação artística, assim como compreendê-la como um ato performativo em si.
O fato de que a figura do criador de exposições – essencialmente e quase que um sinônimo do novo tipo de curador: Harald Szeemann – ter se tornado tão importante nos anos 1970 se deu em grande medida ao fato de que o conceito da natureza de uma exposição radicalmente se transformou. Na sequencia do aumento de interesse na performatividade dentro das artes visuais desde os anos 1960 (performance, instalação,happening, etc.), as exposições se tornaram mais vivas e eram acompanhadas de eventos que por vezes mudavam após a abertura... Novas formas de experiências de tempo e espaço se desenvolveram. Mostras de arte criaram sua própria dramaturgia. Szeemann logo de início comparou seu trabalho ao de um diretor teatral. Beatrice von Bismarck recentemente sublinhou a proximidade do criador de exposições ao trabalho do dramaturgo, e Maria Lind fala de sua prática como “curadora performativa”. Desde os anos 1990, a arte continua a forçar essas tradições expandindo a estrutura das exposições e se descobrindo como espaço social.[ii] Dificilmente se conseguirá penetrar mais profundamente na negligenciada atividade central do teatro.
O conceito de “curadoria” nas artes performativas só faz sentido quando utilizado para enfatizar as possibilidades de uma definição expandida do que é teatro, e do que ele pode ser. E compreendendo-se programação como parte integrante do teatro. De fato, Hans Ulrich Obrist, uma das figuras chave da curadoria contemporânea nas artes visuais disse que “o curador mais importante do século 20” é alguém do campo das artes performativas: Sergei Diaghilev, o famoso empresário dos Ballets Russes. “Ele uniu arte, coreografia, música… Stravinsky, Picasso, Braque, Natalia Goncharova… os grandes artistas, compositores, dançarinos e coreógrafos de seu tempo”.[iii]
“Fazer a programação” (similarmente à criação de exposições antes da virada curatorial nas artes visuais), de modo geral, entende cada trabalho de arte, cada performance como expressão artística autônoma com suposta vida própria. O criador, de início, fornece o palco para a iniciativa artística, habilita-o e tenta oferecer as melhores condições, informando ao público sobre o evento, etc. Tais fidelizações têm sido, com frequência e por razões óbvias, contestadas e transferidas a uma fidelização à instituição em si – ao festival ou espaço de eventos –, ameaçada por falta de subsídios ou ataques políticos. Salvar a instituição é tido hoje com frequência como último recurso.
Curar artes performativas não significa, para mim, ignorar tais pontos. O trabalho artístico em si tem de, obviamente, permanecer no centro, e salvar a instituição de que se é responsável também não é, obviamente, uma má ideia. Mas vamos alterar os pesos para dar espaço a outro aspecto: a necessidade de colocar os trabalhos num contexto mais amplo, fazê-los interagir uns com os outros e com o entorno, em vez de percebê-los como entidades. Além disso, oferecer uma experiência coletiva não apenas durante ou dentro da apresentação em si, mas, ao tornar o festival, o evento, ou local de apresentações num campo mais vasto de comunicação performativa.
Mantendo e perdendo o controle
Para entender a situação específica da cena internacional de teatro independente é crucial compreender que se trata de um fenômeno bastante novo iniciado essencialmente nos anos 1980. Foi um período no qual novas estéticas e subsequentemente novas estruturas e hierarquias de trabalho passaram radicalmente a existir, aliadas a teatros novos ou redefinidos tais como o Mickery em Amsterdam, o Kaaitheater em Bruxelas, o Single em Antuérpia, o Hebbel Theater em Berlim, o TAT (Theater am Turm) em Frankfurt, o Teatergarasjen em Berga, o Ménagerie de Verre em Paris e muitos outros. Além disso, festivais como o Eurokaz em Zagreb, o Inteatro em Polverigi, o Festival d’Automne em Paris e mais tarde o Kunstenfestivaldesarts em Bruxelas, assim como a rede profissional IETM, ofereceram novas possibilidades de uma troca internacional profunda. Acima de tudo, o conceito belga de kunstencentra, como o Vooruit em Gante ou o Stuk em Lovaina, que, com abordagens abertas e frequentemente interdisciplinares, substituiu os grupos convencionais de teatro, vem se difundindo pelos países vizinhos, tornando possível reinventar o teatro enquanto instituição.
Com eles, surge um novo perfil profissional, muitas vezes cheio de carisma: o criador da programação. Como o próprio nome já diz, ênfase é dada ao “criar”. Uma geração de homens de ação definiu o curso dos eventos – e mesmo se seu comportamento pareça por vezes patriarcal, do ponto de vista atual, o cenário era na realidade menos tendencioso a favor do sexo masculino do que a sociedade e seus teatros em geral. Essa geração de fundadores, que ao mesmo tempo redefiniu e importou o modelo da dramaturgia, estabeleceu algumas estruturas e audiências notadamente eficientes e estáveis: foi uma época de invenção e descoberta com repercussões óbvias que chegaram até os dias de hoje. Perfis profissionais foram criados e modificados – incluindo o do próprio artista.
Esse trabalho de base foi amplamente concluído em meados dos anos 1990 (pelo menos no Ocidente), e o que se seguiu foi uma geração de ex-assistentes, de aprendizes críticos, por assim dizer, e com eles um período de continuidade, mas também de diferenciação, reflexão e redes bem-costuradas de desenvolvimento e requestionamento de novos formatos – laboratórios e residências, escolas de teatro de verão, percursos, minifestivais temáticos, plataformas de artistas emergentes...
O quadro ainda é dominado por modelos de transição, mas a forte especialização das artes (exemplificadas nas artes visuais) e a subsequente especialização dos criadores de programação e dramaturgos, e um mundo profissional alterado de maneira geral – que aqui também se fia cada vez mais no trabalho autônomo, independente, assim como no trabalho mais barato –, aliado a públicos cada vez mais diferenciados, novamente requer um perfil diferente de profissional. O curador é um sintoma dessas mudanças na arte assim como na sociedade e no mercado. Seus campos de trabalho são formas teatrais que com frequência não podem ser executadas dentro das estruturas estabelecidas; escritos artísticos que sempre demandam abordagens diferentes; um cenário cada vez mais internacionalizado e diverso; a comunicação de estéticas complexas; transmissão e contextualização. E finalmente, mas de igual importância, o curador sendo o elo entre arte e público.[iv]
Tendo em mente as possibilidades que a curadoria nas artes performativas pode oferecer ao mundo artístico e ao público em geral, é notório que a apresentação de trabalhos de arte ao vivo seja dominada por um grau considerável de pragmatismo. Performances não são pinturas, artefatos facilmente transportáveis, nem ao menos instalações claramente definidas. Poucas exposições têm a complexidade e a imprevisibilidade de um festival. Como forma social de arte, o teatro terá sempre uma atitude diferente em relação ao pragmatismo e à concessão, necessitará de mais espaço e tempo, e, portanto, em matéria de agilidade, permanecerá inferior em relação aos outros gêneros. Numa era de velocidade e falta de espaço isso poderia representar uma falha de mercado, assim como foi uma vantagem em tempos passados. Mas mesmo que as possibilidades de contextualização sejam poucas, talvez um festival ou uma temporada, elas podem também ser muito efetivas. O fato de não ser passível de controle é desafio que deve ser enfrentado de forma produtiva.
A programação – assim como a curadoria – diz respeito a selecionar – uma seleção que pode ser contestada e que, em última análise, se refere a discursos específicos e também a gosto e opinião. Por um lado, sempre haverá a acusação de ser muito restrito (principalmente quando vindo de plateias, críticos, artistas que não se sintam representados naquelas escolhas). Por outro lado, muitos programadores de teatros e festivais são tão abertos que parecem arbitrários. Os motivos das escolhas se tornam ainda mais vagos, confusos, velados e imprecisos. Os argumentos para mantê-las de certa forma amplas são vários, e todos os criadores de programação os conhecem muito bem. Alguns exemplos são a criação de contextos, sem excluir nenhum segmento do público, colocando-se peças mais audaciosas ao lado de outras mais populares, número de visitantes, bilheteria, tolerância em relação a abordagens artísticas, dificuldades financeiras, etc. Na realidade, não é do interesse de ninguém que um curador deseje provar, acima de tudo, sua própria coragem por meio de sua programação – afinal, às custas dos artistas. Estabelecer e manter um festival ou local de evento, ter um público cativo, conquistar aliados e assim criar uma estrutura também para trabalhos de arte mais consequentes, audaciosos e complexos é importante. Principalmente porque os espaços livres para a arte estão diminuindo cada vez mais, e a batalha dos criadores de programação pela sobrevivência de suas programações está se tornando cada dia mais difícil.
Ainda assim, para que manter o que deve de fato ser mantido se ele deixou de ser visível? Se ele deixou de ser legível, o que há de necessário e convincente em meio ao pragmático? O modelo do curador é também um contra modelo do gestor cultural, que valoriza muitas coisas, que delimita um campo amplo de atividades criativas e artísticas cujo objetivo é, no fundo, sociocultural. O trabalho curatorial também significa decidir claramente para si o que é bom e o que é ruim. E sabendo por quê.
Mas uma boa programação não consiste simples ou necessariamente somente de boas apresentações. Por um lado, a decisão a favor de coproduções e contra apresentações de convidados meramente compradas é imensamente importante em termos de política cultural. Mas há também uma decisão pelo risco, resultados imponderáveis; decisões corretas podem levar a um festival ruim se o elemento balizador for somente seus resultados, em vez de suas iniciativas. Por um lado, trata-se da criação de relações internas – mesmo se o festival não tiver um fio condutor temático. Uma programação bem planejada depende da combinação de diferentes formatos, estéticas e argumentos dentro de um perfil, apesar disso, muito claramente delineado. Mas depende também de considerações supostamente mais pragmáticas, mas frequentemente não menos dramatúrgicas, podendo assumir um papel importante na beleza da programação: realmente pode acontecer de uma apresentação ser simplesmente muito longa para uma janela específica. Ou muito curta. Ou que precise de outro tipo de palco. Ou que seja do gênero errado. Temática ou esteticamente muito parecida a mais um espetáculo. Ou muito diferente. E mesmo assim, se valer a pena, uma solução provavelmente se apresentará. E sim, é preciso preencher os horários de uma programação: público jovem, divertimento, policial, conceitual, novidades, clássicos... Mas há também o seguinte: assim que se esbarre com uma peça que se deseja apresentar de qualquer jeito, toda essa estrutura básica é rapidamente deixada de lado.
O curatorial
Muitas mudanças de interesse relacionadas ao descrito ocorreram concomitantemente no discurso artístico atual: o aumento da atenção dado pelas artes visuais à performatividade, à coreografia e ao teatro. O novo foco da curadoria nas artes performativas que enfatiza os recursos específicos desta linguagem. E o que Claire Bishop influentemente descreveu como “virada social”: a atenção crescente de artistas por práticas colaborativas e pela participação do público, o que leva a uma arte “na qual as pessoas constituem o meio e material artístico central, à maneira do teatro e da performance”.[v]
Todos esses aspectos entram em jogo quando tentamos descrever o curatorial nas artes performativas: o “curatorial”, termo usado por eruditos como Irit Rogoff ou Beatrice von Bismarck não é idêntico à tarefa da curadoria. Enquanto “curadoria” é amplamente visto como um conjunto profissional de habilidades, atividades e práticas, usado para criar um produto (como um evento, uma exposição, uma mostra, um festival), o curatorial é considerado por Beatrice von Bismarck como algo mais amplo do qual as atividades da curadoria se nutrem: “Curadoria é uma atividade de constelação. Ao combinar coisas que não haviam sido combinadas anteriormente – trabalhos de arte, artefatos, informações, pessoas, locais, contextos, recursos, etc. – ela não é definida apenas esteticamente, mas também social, econômica, institucional e discursivamente. Eu a entendo como sendo menos impulsionada pela representação do que pela necessidade de tornar público”. Comparando-se a isto, “curatorial é o campo dinâmico onde a condição constelacional se vivifica. Constitui-se da reunião das técnicas de curadoria, juntamente com os participantes – as pessoas em si envolvidas, que potencialmente vêm de backgrounds diferentes, têm diferentes prioridades e que se valem de experiências, conhecimentos, disciplinas diferentes – e aliados, finalmente, às concepções materiais e discursivas, quer sejam elas institucionais, disciplinares, regionais, raciais e de gênero”.[vi]
Irit Rogoff soma a isso e com leve diferença de ênfase a respeito da prática, questiona “como instanciar isso enquanto processo, como de fato não permitir que as coisas endureçam, e como criar uma plataforma pública que permita às pessoas fazer parte de tais processos”.[vii]
Um “campo dinâmico”, “um processo, como de fato não permitir que as coisas endureçam” – só essa descrição esclarece o quanto o conceito de curatorial é pensado como performativo. E quanto o medo de algo que possa parecer “completo” demais, demais como um “produto finalizado”, já é parte constituinte de todas as artes ao vivo, onde a proximidade permanente de falha, acaso, erros e – como já mencionado – perda de controle e concessões não são vistas como falhas, mas antes como o cerne da linguagem do teatro: “O que é específico ao teatro”, Heiner Müller costumava dizer, “não é a presença do ator vivente ou do espectador vivente, mas sim a presença da pessoa que tem o potencial de morrer”.[viii]
Muitos conceitos curatoriais nas artes cênicas, portanto, impelem o risco de falhas de maneira a torná-lo tangível para a plateia e criar, desta forma, uma tensão especial de vivacidade. Expandir o tempo pode ser um impulso (brincando com a força, a exaustão, o tédio, o entusiasmo do corpo coletivo dos visitantes). A densidade ou a complexidade do espaço pode ser outro. Mas também o confronto de trabalhos que possam não ser compatíveis à primeira vista cria tensão e uma abertura por meio de seu atrito.
O teatro é o espaço onde as sociedades têm explorado seus próprios recursos, procedimentos, ideais e limites. O teatro é, tal como Hannah Arendt declara, “a arte política por excelência; somente nele a esfera política é transposta em arte”.[ix] Tornando isso produtivo também na criação de um campo curatorial, chegamos ao conceito de agonismo de Chantal Mouffe, um conceito político que objetiva mostrar diferentes posições na luta e desacordos (em oposição inclusive ao conceito de Marx de materialismo que resultaria sempre em uma sociedade harmônica). Ao utilizar o conceito de pluralismo agonístico, Mouffe nos permite pensar a democracia de maneira diferente: não como um consenso necessário e até mesmo possível, mas antes como sempre permitindo a possibilidade do conflito surgir. Democracia é a arena onde podemos legitimar essas diferenças. Assim como o conceito de curatorial é pensado com performativo, o conceito de agonismo parece quase que parafrasear teatro. Não por acaso retirou sua nomenclatura de agon, jogo, competição. Precisamos de um agonismo divertido (embora com frequência bastante sério) para impedir um antagonismo que aborte toda negociação positiva. Sem negligenciar os problemas óbvios na transferência de um conceito de teoria política para o domínio da estética: a ideia de curatorial, campo performativo que mantém as coisas fluindo e que permite uma representação divertida (porém séria) das diferentes posições é a visão, talvez levemente utópica, do que a curadoria nas artes performativas deveria almejar.
Espaço desafiadores
Teatro ainda é geralmente limitado a certos espaços exclusivamente reservados para sua prática: proscênios e caixas pretas. Mas mesmo em arranjos mais convencionais, a consciência da especificidade do espaço pode produzir valor agregado artístico ou curatorial: Como a plateia entra neste espaço? Quando a representação de fato começa? Na porta de entrada do teatro? No foyer? No auditório? Faz diferença quando eu tenho que entrar por um lugar diferente do habitual? Faz parte da representação ou é mero pragmatismo? Quais são as regras do contrato teatral neste caso?
Mesmo espaços teatrais convencionais não são neutros. Por um lado, fornecem o equipamento técnico necessário, protegem o trabalho de encontros indesejados com o entorno, permitem a concentração, protegem a clareza artística etc. Por outro lado, esses espaços por si só já definem amplamente o resultado possível. Eles não apenas se limitam em termos de arquitetura, arranjos espaciais possíveis. Também representam determinada ideia de instituição, formados que foram principalmente ao final do século 18, início do século 19. Suas estruturas inerentes não somente reproduzem determinadas convenções do que o teatro deva ser como reproduzem determinada imagem de sociedade. Emolduram e frequentemente atenuam visões artísticas e também políticas. É, portanto, sem surpresa que vemos muitos projetos curatoriais no campo de teatro desejar abandonar esses espaços pré-determinados ou tentar desafiá-los (como fez deufert&plischke com o B-Visible).
A empolgação frente aos trabalhos em local específico desde a metade dos anos 90 colocou um foco especial no espaço, ao abandonar os teatros e ocupar espaços supostamente não artísticos, buscando algo autêntico ou desejando contradizer o aparentemente autêntico. Esse movimento para dentro da cidade (e frequentemente para a periferia da cidade, para áreas industriais vazias, ruínas parciais de fábricas, locais amplos de armazenamento...) está bastante conectada com o desejo pelo real. É isso que está por trás de todos os elementos do chamado teatro documentário, que somente alguns anos depois se tornou extremamente popular, mas que também cabe na lógica da gentrificação, ao ocupar, simbolicamente ao menos, espaços antes reservados para outros.
Usando áreas designadas ao teatro contra tendências ou mesmo abandonando-os não somente desafia a instituição, mas o trabalho artístico em si, mostrando as limitações assim como as possibilidades do gênero como tal. Condições de trabalho ficam confusas ou por causa disso, o acaso pode assumir o controle, a plateia precisa ser organizada de maneira diferente, as possibilidades técnicas são limitadas. Trabalhos em local específico não podem somente transferir a lógica de um teatro para outra situação espacial. Deve ser mais do que uma mera reação à situação, uma resposta pragmática que lida com desvantagens ou adapta planejamentos iniciais o quanto necessário. O trabalho em local específico ganha ímpeto quando se adapta à lógica das circunstâncias, estimula-as ou as contradiz propositadamente. Deve ser responsivo ao contexto e fazer do espaço como tal (e não somente uma parte limitada dele na forma de um cenário, por exemplo) parte de sua forma e conteúdo – mas não rendendo-se: a obediência em relação ao espaço facilmente cria tédio – quando a narrativa, a atmosfera, o movimento, o espaço etc. se aproximam um do outro, pode resultar simplesmente num atalho semântico – e toda tensão artística se esvai.
Apartamentos e estádios
Um dos mais famosos projetos curatoriais para um local específico nas artes performativas, X Apartments, de Matthias Lilienthal, dramaturgo alemão e diretor fundador do influente HAU - Hebbel am Ufer Berlin, tem, na verdade, um predecessor ainda mais famoso. Para a exibição icônica dosChambres d’Amis (Quarto de Hóspedes) de 1986, o curador Jan Hoet convenceu mais de 50 habitantes da cidade de Gent que permitissem aos artistas trabalharem com seu apartamento. Seu conceito de “deslocamento”, que mais tarde também foi utilizado na Documenta 9, almeja pelas mudanças de percepção que ocorrem quando algo é vivenciado num contexto pouco habitual. Ele retirou a arte dos espaços exclusivos das galerias aos quais é geralmente confinada: “Eu me incomodo com a ideia de que a arte esteja aqui e a realidade ali, separadas”.[x] Cada artista (entre eles Joseph Kosuth, Sol LeWitt e Mario Merz) usou um ou dois quartos para criar uma obra que refletisse o entorno. Visto que eram apartamentos em uso, os encontros e as discussões com os proprietários eram parte integrante do conceito.
Embora Chambres d’Amis apresentasse exclusivamente obras de artes visuais, criou efetivamente sua própria performatividade acionando a imaginação dos visitantes: os trajetos entre os apartamentos permitiram narrativas e dramaturgias individuais muito diversas, e os ambientes privados nos apartamentos estavam tão abertos à interpretação como as obras de arte em si.
Matthias Lilienthal valorizou este aspecto anos mais tarde com osX-Apartments, basicamente encomendando a diretores de teatro, coreógrafos, artistas (entre eles Fatih Akin, Pawel Althamer, andcompany&Co., Herbert Fritsch, Heiner Goebbels, Jonathan Meese, Peaches, raumlaborberlin, Meg Stuart, Anna Viebrock, Barbara Weber, Krysztof Warlikowski etc.) que inventassem pequenas performances dentro dos diferentes apartamentos.[xi] Ao introduzir uma estrutura de tempo (a plateia assiste durante todo o tempo a cada pequena apresentação nos apartamentos e depois passeia até a chegada do próximo grupo), ele coletiviza a experiência do visitante. Não apenas os diferentes “locais” em si, mas também os corpos se movendo de lugar para lugar fazem parte desta experiência que é mais do que a soma das apresentações. X-Apartments brinca com o espírito de uma expedição, conecta a plateia, arbitrariamente reunida e misturada e que talvez não se conheça previamente. No melhor dos casos essas pequenas cenas, intervenções, instalações criam sua própria fantasia sobre os apartamentos, seu uso, seus moradores. Estendem cenários “reais” para o campo da imaginação ou abordagens documentais de estrutura artística. As sequências menos bem sucedidas, por outro lado, tendem a cair na armadilha de voyeurismo inerente ou então confiam principalmente na fetichização e exotização da vida dos membros de outros grupos ou classes sociais.
Enquanto a quantidade de apartamentos, o extraordinário no ordinário, a mudança da percepção em relação aos cenários de todos os dias são peças chave de X Apartments, a curadora polonesa Joanna Warsza escolheu um local com poder simbólico para seu projetoFinissage of Stadium X (2006–2008): o Estádio do 10º Aniversário de Varsóvia que foi construído em 1955 dos destroços da capital polonesa arruinada pela guerra. O estádio representava a ideia de comunismo e de uma nova Polônia. No entanto, por volta de meados dos anos 80, foi abandonado e se tornou ele mesmo uma ruína moderna. Novo fluxo de vida foi infundido por comerciantes vietnamitas e russos que o assumiram como pioneiros do recém-chegado capitalismo. O estádio, dessa forma, tornou-se o mercado a céu aberto Jarmark Europa, a única localidade multicultural da cidade, um reino de informalidade e vendas com desconto, assim como um paraíso e campo de trabalho para botânicos.
A heterogeneidade do local, a comunidade vietnamita geralmente invisível, os debates em torno do novo estádio nacional construído para a Eurocopa de 2012, e a falta de debate crítico sobre o legado da arquitetura polonesa do pós-guerra, inspirou os três anos de Finissage of Stadium X. Incluía uma caminhada acústica pelo setor vietnamita (Uma viagem para a Ásia, 2006), Boniek!, uma apresentação solo de um homem reencenando o legendário jogo de futebol Polônia-Bélgica de 1982, por Massimo Furlan (2007), ou a transmissão da Radio Stadion por Radio Simulador e backyardradio (2008). Excursões subjetivas para o estádio que já não existia foram guiadas por artistas e ativistas. Neste projeto, o local em si era o principal protagonista, não somente a mera arquitetura mas também o papel simbólico que ela teve para Varsóvia (e por isso mesmo se constituía quase numa metáfora das mudanças pelas quais a Polônia passou).
Um edifício enquanto performance
Uma virada quase irônica à noção de local específico deu vida ao projeto The Theatre (O Teatro), do arquiteto Tor Lindstrand e do coreógrafo e teórico Mårten Spångberg. Seu projeto interdisciplinar de longo prazo “International Festival”, criado em 2004, posiciona-se em algum lugar entre teatro, coreografia, arquitetura e curadoria. Divertida e às vezes subversivamente, eles isolam e investigam diferentes aspectos do que consiste o festival: The Welcome Package (Pacote de Boas-Vindas), por exemplo, encomendada pelo festival berlinense Tanz im August em 2004, era uma “sacola alargada”, semelhante às que muitos festivais dão aos artistas convidados com o intuito de fornecer informações e pequenos presentes: “Os 18 objetos do pacote foram criados para produzir uma atenção heterogênea às convenções e parcimônias do festival”[xii], dando, por exemplo, a cada participante, um DVD diferente, incentivando a troca depois de tê-lo assistido. Ou o IF Perfume (2005) para o Kaaitheater em Bruxelas: pequenas garrafas de perfumes foram entregues ao público sem instruções adicionais. “Durante o evento, que consistia de trabalhos de mais de 50 coreógrafos, a fragrância foi espalhada e usada pela plateia, seu uso criou um senso de espaço, comunidade e intimidade intensos.”[xiii] A ideia de fazer a curadoria não só de outros artistas, mas também de performers e mesmo de outros festivais foi radicalizada consequentemente em IF Plastic Bags, quando milhares de sacolas de plástico com o logo IF foram distribuídas pelo Festival International para teatros por toda Europa para serem utilizadas e distribuídas – criando assim um “roteiro aberto para uma coreografia potencial de 25.000 artistas, um tipo de dança intereuropeia realizada através de nossos movimentos diários”.[xiv]



Matthias Lilienthal, X-Apartments (de cima para baixo)
X-Apartments Beirut, 2013; Nurkan Erpulat, X-Apartments (PHOTOGRAPHY BEIRUT © ELSIE HADDAD)
X-Apartments Warsaw, 2010. (PHOTOGRAPHY WARSAW © ADAM WALICKI)
Mannheim, 2011; and Urban Guerilla Gardening,PHOTOGRAPHY MANNHEIM © FLORIAN MERDES
Para o Steirischer Herbst 2007, o Festival International desenvolveu seu projeto mais ambicioso. Um local inteiro foi construído como afirmação performativa e curatorial: The Theatreoriginou-se da ideia de que o teatro era originalmente uma ação pública em um espaço público (e hoje ele se tornou principalmente uma ação privada em uma sala privada ou semiprivada). Foi uma tentativa de reviver o antigo maquinário re-apresentando o teatro em si ao construir um teatro. O desenvolvimento do The Theatre foi acompanhado por uma série de oficinas envolvendo diferentes artistas, arquitetos, teóricos, etc. – isso em si já constitui um tipo de performance social com resultado aberto. The Theatretransformou tudo o que no teatro não é teatro, em teatro – incluindo um palco flexível de 12 x 12 metros. Tão importante quanto esta habilidade conceitual que permitiu uma visão diferente sobre a noção de espaço ao transformá-lo numa performance, e assim num trabalho de arte baseado no tempo, foi o desinteresse por coisas que normalmente teriam desempenhado um papel importante. A estética da arquitetura era preferencialmente genérica e pragmática – e a programação do evento delegada principalmente aos curadores dos festivais.


Tor Lindstrand e Mårten Spångberg/ International Festival, The Theatre, steirischer herbst 2007.
Fotografia: AUGENNERV (de cima), PAUL OTT (de baixo)
Exposições ao vivo
Fugindo aos espaços altamente determinados e simbolicamente carregados de teatro pode significar acabar em espaços ainda mais determinados e simbolicamente carregados: os cubos brancos de museus e galerias. O aumento de interesse em todos os tipos de “exposições ao vivo” nos últimos anos tem muitas razões, algumas profanas, como a de tentar adentrar outros mercados ou outros discursos com prestígio aparentemente maior. Mas para a maioria dos artistas e curadores a motivação inicial ainda é parecida com a ideia de Hoet de “deslocamento”. Ao mudar o arcabouço institucional, estético e arquitetônico, as coordenadas da percepção e reflexão também mudam.
O curador Hans Ulrich Obrist foi por muitos anos um dos principais protagonistas da integração de aspectos performativos a exposições de artes visuais. Desde 1990, tem colaborado com coreógrafos como Meg Stuart e Xavier Le Roy[xv], e mais tarde produziu muitos espetáculos tendo como base o tempo, como Il Tempo del Postino em 2007 (junto com Philippe Parreno).[xvi] Tino Sehgal é de longe o artista contemporâneo mais conhecido inserindo arte ao vivo em museus e galerias, produz seu trabalho no limite entre coreografia e artes visuais. Muitas de suas reflexões sobre representação são compartilhadas por Xavier Le Roy, que colaborou com ele, por exemplo, em Project (2003). Em 2012, Le Roy mostrou sua exposição ao vivo Retrospective pela primeira vez. Foi uma “exposição concebida como uma coreografia de ações a serem conduzidas pelos atores durante a mostra”.[xvii] Le Roy utiliza o formato e o gênero da retrospectiva para revisitar o material de suas coreografias solo, deixando os atores recriarem suas próprias memórias e histórias conectadas a eles. E enfatiza o conceito de tempo ao produzir atritos entre diferentes experiências de tempo reunidas: a envergadura de tempo dessa obra revisitada, o tempo gasto por cada visitante, o tempo de trabalho dos atores e a duração de toda a exposição, o que cria, com suas mudanças permanentes, uma dramaturgia própria. Retrospective “compõe-se de situações que questionam as várias experiências de como usamos, consumimos e produzimos o tempo”.[xviii]
Mas enquanto em Retrospective, o tempo é uma consideração essencial, em muitas outras exposição ao vivo ele parece mais um acessório: tanto quanto Obrist enfatize verbalmente seu interesse pela duração, observando-se cuidadosamente suas curadorias baseadas no tempo, o potencial real do “ao vivo” parece negligenciado: em 11 Rooms[xix] (co-curadoria com Klaus Biesenbach), por exemplo, trata-se de uma exposição onde onze trabalhos de arte ao vivo são colocados em onze cubos brancos: as performances são claramente estruturadas como trabalhos de arte, como objetos em uma exposição um tanto quanto antiquada. As performances duram o dia inteiro durante a duração da exposição. Mas as convenções para assisti-las não são desafiadas. Talvez o tempo em que se assiste a elas seja mais longo do que a média infame de 30 segundos dedicada a cada trabalho de arte na maioria das exposições, mas não há interesse em criar uma experiência de duração no visitante, nem mesmo uma experiência de duração do performer, a mudança em seu corpo, sua atitude, etc. É temporal, porque é isso que o formato clássico da exposição requer. Para Obrist e muitos dos artistas com quem ele trabalha, o principal interesse é substituir objetos por pessoas – e não desenvolver trabalhos de arte que consistem de pessoas. A abordagem é (com algumas exceções) na maior parte escultural ou espacial: o material é o ser humano. Ou como Obrist mesmo diz: 11 Rooms é “como uma galeria de esculturas onde todas as esculturas vão para casa às 18 horas”.[xx]
Longo demais, curto demais, rápido demais, lento demais
Mas tempo é uma ferramenta mais poderosa do que isto. Teatro não dramático ou pós-dramático, por exemplo, “em vez de usar um Welt-Zeitficcional” (e assim fingir uma tempo-realidade diferente) insiste em “constituir tempo e espaço no palco”. “O que é especial em relação a esse tipo de teatro é a orientação de toda situação teatral no sentido da relação entre atores e público.”[xxi] Teatro nesse entendimento não é necessariamente definido por uma história, uma ficção, um faz de conta e arcos dramáticos, etc. (embora possa conter tudo isso) – ele é definido pela criação de uma realidade temporariamente compartilhada. E esta é uma oportunidade também para a curadoria performativa.


Truth is concrete. A 24/7 marathon camp on artistic strategies in politics, steirischer herbst 2012. PHOTOGRAPHY: WOLFGANG SILVERI
Truth is concrete (A verdade é concreta)[xxii] foi um projeto curatorial ambicioso montado em setembro de 2012 em Graz, na Áustria, em que nós (a equipe de curadoria do Steirischer Herbst Festival) tentamos forçar essa noção ao extremo. O ponto de partida foi a forte impressão do papel dos artistas no turbilhão político no mundo inteiro (de Tahrir a Syntagma, de Zuccotti a Praça Taksim, do Japão depois de Fukushima a Moscou durante a onda de manifestações, de Londres, Budapeste, Atenas, Istanbul, a Ramallah, Tel Aviv, Tunis, Rio), e a pergunta aberta sobre o papel possível das estratégias artísticas nessas situações. Concebido bem antes do início do movimento Occupy e tendo ocorrido pouco depois de seu primeiro aniversário, o acampamento-maratona Truth is concrete reuniu mais de 200 artistas, ativistas e teóricos. A eles se juntaram 100 estudantes e jovens profissionais, bem como plateia local e internacional, que se encontraram no campo comum da arte e do ativismo: um acampamento-maratona 24 horas por dia, sete dias por semana, com 170 horas de palestras, apresentações, performances, produções, discussões de exploração de estratégias e táticas úteis na arte e na política.
A máquina-maratona funcionou sem parar – às vezes muito rápida, outras, muito lenta, – o dia inteiro, todos os dias, e a noite inteira, todas as noites. Produziu pensamento, argumentos, conhecimento, mas também criou frustração e exaustão. Usou o tempo como uma ferramenta para criar uma experiência social extrema. Mas ao fazer isso, não era ela somente um espelho ou até mesmo o cumprimento da agenda neoliberal de mais e mais, de trabalho extremo e disponibilidade permanente? Será que ela não apenas prolongou a corrida que travamos em nosso ambiente capitalista? Não seria melhor reduzirmos a velocidade e não nos precipitarmos?
Truth is concrete apontava na direção oposta. Fazer uma pausa não ajudaria. Essa máquina não definiu uma tarefa que poderia ser cumprida. Ela não poderia ser facilmente transformada em mercadoria, nem facilmente consumida. Não havia hora certa; ela não foi construída em torno de clímaces. Não havia quantidade de horas ideal para compreendê-la de maneira correta. Portanto, não havia, de fato, uma maratona, mas muitas individuais: umas mais curtas, outras mais longas; algumas buscando profundidade em temas familiares, outras buscando coisas sobre as quais sequer tinham ideia. Perder fazia parte da necessidade de fazer escolhas.
Desta forma, ela também constituiu uma metáfora para os movimentos políticos: passando uma hora em Occupy Wall Street, você vai falar com algumas pessoas, visitar algumas barracas, possivelmente inalar um pouco do espírito. Você volta, vai a algumas reuniões de comissões, talvez da próxima vez comece a se convencer. Ou então entra. Tudo é possível, mas terá diferentes intensidades e percepções. Truth is concrete não se interessava somente pela intensidade intelectual produzida. Interessava-se também pela intensidade física. Pelo impacto que este encontro produzia sobre nossos corpos. No aqui e agora.
Mecanicista, rígida era a maratona correndo ao centro, rodeada de ambiente para morar e trabalhar desenvolvido pela raumlaborberlin - um espaço social com suas próprias necessidades e horários, criando uma comunidade por uma semana, misturando dia e noite, desenvolvendo o seu próprio jetlag em relação ao mundo exterior. O gesto vertical da máquina-maratona foi incorporado numa estrutura horizontal de abertura: com oficinas organizadas de duração de um dia e vários projetos temporais, além de uma exposição, mas mais importante com o paralelo “Open marathon” baseada na auto-organização: os seus conteúdos eram produzidos inteiramente pelos participantes espontaneamente preenchendo os horários.[xxiii]


Truth is concrete. A 24/7 marathon camp on artistic strategies in politics, steirischer herbst 2012. PHOTOGRAPHY: THOMAS RAGGAM
Conhecimento performativo
Se curadoria performativa entende a si mesma como a criação de situações sociais estruturadas no espaço e tempo, então produção e troca de conhecimento são questões fundamentais – e podem ser encontradas em muitos dos projetos já mencionados como sendo seu objetivo principal.
Também expo zéro (desde 2009) de Boris Charmatz entra nesta categoria: como parte de seu Musée de la danse é criado como uma exposição, uma mostra viva, dançante, falante – e um intercâmbio permanente. Especialistas de diferentes áreas – coreógrafos, escritores, artistas, diretores, teóricos, artistas plásticos, arquitetos – primeiro passam juntos quatro dias numa espécie de think tank e, em seguida, abriu-se o espaço para o público, movimentos, pensamentos, palavras presentes... e se envolveram uns com os outros em comunicações verbais e não-verbais. O que cabe em um Musée de la danse? Pensar o museu significa ao mesmo tempo criá-lo – um museu de dança só pode ser efêmero (o “zero” do título se refere à ausência de objetos).
Go create™ resistance (2002- 2005), de Matthias von Hartz não era um museu, mas um tipo diferente de espaço público. Ele desenvolveu uma série de sessões noturnas centradas em arte e ativismo na Schauspielhaus de Hamburgo, um dos redutos da cultura burguesa. Ou o Dicionário da Guerra(2006/2007)[xxiv], plataforma colaborativa para a criação de 100 conceitos sobre o tema da guerra. Durante quatro eventos de dois dias em Frankfurt, Munique, Berlim e Graz, cientistas, artistas, teóricos e profissionais apresentaram suas entradas para o dicionário com palestras, performances, filmes, apresentações de slides, leituras, concertos em rígida ordem alfabética, como discurso da maratona. De armas do tipo ABC à população civil, da invasão de paraquedas a ocorrências em campo, batata a danos colaterais, guerra informática à vigilância por radar, e saudades à resistência. Todas as entradas foram filmadas e enviadas para um dicionário em vídeo que, mais tarde, foi ampliado com contribuições de outras cidades.[xxv]

Hannah Hurtzig, Black Market for Useful Knowledge and Non-Knowledge (PHOTOGRAPHY: JOHANNES GELLNER)
Conhecimento profissional e discursos teóricos encontram narrativas pessoais; a distribuição de conhecimento torna-se apreensível para um público que é ao mesmo tempo voyeur e testemunha de uma conversa quase íntima: dois protagonistas trocam conhecimentos na forma de narrativa pessoal, de que só podemos participar de forma mediada pela imagem e som transmitidos. Um princípio que é multiplicado noBlackmarket for Useful Knowldege and Non-Knowledge (Mercado negro para conhecimento útil e não conhecimento), uma instalação para 50 a 100 especialistas em pequenas mesas. Aqui, todo mundo pode comprar meia hora de conhecimento íntimo especializado de cientistas, artistas, cabeleireiros, cartomantes por um euro: fatos, experiências, autoajuda ou simplesmente percepções em áreas de conhecimento completamente desconhecidas – o conhecimento está sempre conectado à pessoa que o está transmitindo. E à maneira como ele está sendo transmitido. Em todas as suas instalações do conhecimento, Hannah Hurtzig enfatiza o caráter performativo da troca de conhecimento.[xxvii]


Hannah Hurtzig, Black Market for Useful Knowledge and Non-Knowledge No. 8: The Gift and Other Violations of the Principle of Exchange. An installation with 100 experts, steirischer herbst 2007. PHOTOGRAPHY: JOHANNES GELLNER
Sem medo da tarefa
Todos esses exemplos colocam ênfase muito grande no conceito curatorial. Em grande medida, definem as obras artísticas que incluíram, escolheram, adaptaram, produziram – e em alguns casos, eles mesmos são as próprias obras artísticas (como nos exemplos de Deufert & Plischke, Boris Charmatz, Teatro Internacional, Hannah Hurtzig etc.). No entanto, pensamento curatorial começa muito antes e pode desempenhar um papel crucial também na programação de festival ou espaços de formatos mais convencionais.
Então, o que uma pessoa pode perceber quando assiste, em uma noite, duas performances claramente justapostas? Como isso muda determinada apresentação retrospectivamente e uma outra por antecipação? (O curador de exposições raramente tem esta possibilidade de conduzir a ordem da recepção pelo público com tanta precisão.) Que influência isso exerce sobre a recepção se um leitmotiv ou tema é oferecido como o foco? Que pontos de referência podem ser dados para uma obra de arte, talvez também historicamente, pelo menos em papel ou em vídeo? Que contextos de experiência são criados para os espectadores já na própria escolha do espaço, o ponto no tempo, o design gráfico, as estratégias de publicidade? É possível não só salpicar postulados teóricos sobre o programa, mas também de fato misturá-los?
Esta lista pode continuar, ela apenas traz alguns exemplos arbitrários de como contextos e focos podem ser criados, por meio da elaboração de sessões menores ou agrupamentos, elos no programa como um todo. Afinal, bienais e museus também são, em geral, navios não tão destros – e ainda assim jogam cada vez mais com seu eixo temporal, com a ideia do performativo, do social. Portanto, a atenção na direção de um arco, na direção de atritos ou adições construtivas, na direção de uma dramaturgia de programação também é uma tentativa de recuperar o terreno perdido para o teatro como forma de arte. Uma sequência de eventos, uma mudança de andamento, uma alteração na intensidade, uma mudança no ponto de vista. Mesmo que dificilmente algum espectador possa seguir tais dramaturgias em sua totalidade, elas são, no entanto, perceptíveis. Pode-se caminhar através de um festival como através de uma paisagem. Algumas coisas são acidentais, outras, óbvias. Permanecer ou seguir adiante, apreender coisas de forma intuitiva ou abarcá-las intelectualmente. O fantasma do über-curador, criando corajosamente sua própria obra a partir de obras de arte de outras pessoas não deve ser temido no campo performativo. Pelo contrário, existe sim uma falta de coragem para conferir significado – e não tanto por modéstia, mas por medo da tarefa.
Notas:
[i] B-Visible, curadoria dos coreógrafos Kattrin Deufert e Thomas Plischke, junto com o dramaturgo Jeroen Peeters, apresentado no Kunstencentrum Vooruit, Gent/Bélgica em novembro de 2002.
[ii] Nicolas Bourriaud, crítico de arte, cunhou o termo “relational aesthetics” (estética relacional) referindo-se a isso, ao final dos anos 90.
[iii] Hans Ulrich Obrist “Diaghilev é o curador mais importante do século 20”. In: Florian Malzacher, Tea Tupajića e Petra Zanki (Eds.). Curating Performing Arts. Zagreb: Frakcija Performing Arts Journal: 2010, p. 44.
[iv] Para uma reflexão mais ampla sobre as diferentes condições da curadoria nas artes visuais e cênicas, assim como para critérios, relação com o mercado etc. veja também: Florian Malzacher “Cause & Result. About a job with an unclear profile, aim and future”. In: Florian Malzacher, Tea Tupajić e Petra Zanki (Eds.). Curating Performing Arts. Zagreb: Frakcija Performing Arts Journal: 2010, p. 10–19.
[v] Claire Bishop. Artificial Hells: Participatory Art and the Politics of Spectatorship. London and New York: Verso, 2012, p. 2.
[vi] Beatrice von Bismarck e Irit Rogoff. “A conversation between Irit Rogoff and Beatrice von Bismarck”. Em: Beatrice v. Bismarck, Jörn Schafaff, Thomas Weski (Eds.). Cultures of the Curatorial. Sternberg Press: Berlin, 2012, p. 24–25.
[vii] Beatrice von Bismarck and Irit Rogoff. “A conversation between Irit Rogoff and Beatrice von Bismarck”. Em: Beatrice
v. Bismarck, Jörn Schafaff, Thomas Weski (Eds.). Cultures of the Curatorial. Sternberg Press: Berlin, 2012, p. 23.
[viii] Heiner Müller conversando com Alexander Kluge: http://muller-kluge.library.cornell.edu/en/video_transcript.php?f=121
[ix] Hannah Arendt. The Human Condition. University of Chicago Press, 1989, p. 188.
[x] “Avant-Garde Art Show Adorns Belgian Homes”. The New York Times. 19 de agosto de 1986.
[xi] Criado inicialmente para o festival Theater der Welt em 2002 em Duisburg, o formato se mostrou tão exitoso e adaptável que desde então novas versões ocorreram em cidades como Berlim, Caracas, Varsóvia, Viena, São Paulo, Johannesburg ou Istanbul, muitas vezes com diferentes co-curadores e colaboradores.
[xii] http://international-festival.org/node/3
[xiii] http://international-festival.org/node/4
[xiv] http://international-festival.org/node/56
[xv] P.e. In Laboratorium (curadoria com Barbara Vanderlinden), Antuérpia, 1999.
[xvi] Espetáculo temporal com Liam Gillick, Tino Seghal, Tacita Dean, Carsten Höller, Olafur Eliasson, Dominique Gonzalez-Foerster e outros.
[xvii] http://www.xavierleroy.com/page.php?sp=2d6b21a02b428a09f2ebd3d6cbaf2f6be1e3848d&lg=en
[xviii] http://www.xavierleroy.com/page.php?sp=2d6b21a02b428a09f2ebd3d6cbaf2f6be1e3848d&lg=e
[xix] O projeto foi exibido como 11 Rooms no Festival Internacional de Manchester em julho de 2011 com trabalhos de Marina Abramović, John Baldessari, Allora e Calzadilla, Simon Fujiwara, Joan Jonas, Laura Lima, Roman Ondák, Lucy Raven, Tino Sehgal, Santiago Sierra, Xu Zhen. Edições posteriores ocorreram na Ruhrtriennale, Essen/Alemanha (12 Rooms, 2012), nos Public Art Projects, Sydney/Australia (13 Rooms, 2013), no Art Basel, Basel/Switzerland (14 Rooms, 2014). Para cada edição, a lista de artistas era parcialmente modificada.
[xx] http://www.mif.co.uk/event/11-rooms
[xxi] Hans-Thies Lehmann. “Shakespeare’s Grin. Remarks on World Theatre with Forced Entertainment”. Not Even A Game Anymore. The Theatre of Forced Entertainment. Ed./ Hg. Judith Helmer e Florian Malzacher. Berlim: Alexander Verlag, 2004, p. 114. Del 3 → Produksjon og kontekst
[xxii] Truth is concrete. Um acampamento-maratona de 24 horas, 7 dias por semana, sobre estratégias artísticas em política e estratégias políticas em arte. Steirischer herbst, Graz/Áustria de 21 a 28 de setembro de 2012. Curadoria de Anne Faucheret, Veronica Kaup-Hasler, Kira Kirsch e Florian Malzacher (ideia e conceito).
[xxiii] Há obviamente outros exemplos muito bons do uso do tempo como método curatorial: P.e. Unendlicher Spaß de Matthias Lilienthal (Berlim, 2012, a partir do romance Infinite Jest de David Foster Wallace) enfatizou a duração assim como a especificidade do local: o público seguia por 24 horas, de uma cena para a outra, parcialmente a pé (principalmente dentro do terreno de uma grande área esportiva), parcialmente de ônibus pela pátina da antiga Berlim ocidental. A abordagem oposta - encurtar a duração das performances ao mínimo - foi utilizada no projeto de Tom Stromberg para a Documenta X (1997): Theaterskizzen (Sketches de teatro) reduziu o tempo de cada apresentação para poucos minutos e assim, reduziu as possibilidades de dramaturgias convencionais; tarefa que praticamente apenas Stefan Pucher e Gob Squad com 15 minutos somente conseguiram cumprir e realizar de forma convincente. Ainda mais curtos são os espaços que a organização Creative Time de Nova Iorque - dedicada à arte em espaços públicos - oferece em seus encontros anuais: apenas oito minutos para cada artista, teórico, ativista.
[xxiv] Dictionary of War teve curadoria do coletivo de curadores Unfriendly Takeover, em conjunto com o coletivo de ativistas Multitude e.V. www.dictionaryofwar.org.
[xxv] Outros projetos dedicados à ideia de produção de conhecimento e intercâmbio foram, por exemplo, as diferentes conferências e oficinas Spielfeldforschung (Playing field research) concebidas para o festival Steirischer Herbst, entre 2006 e 2010, em que a teoria foi confrontada com diferentes formatos de arte. Novos formatos foram desenvolvidos que reuniram teoria e prática artística ao nível do olhar e da proximidade, como por exemplo, Walks in Progress (2006), que caminhava pela cidade bem como pelo programa do festival. Este conceito foi mais desenvolvido posteriormente em Walking Conferences (2007 e 2008 - com curadoria de Florian Malzacher e Gesa Ziemer). Ou International Summer Academy no centro cultural Mousonturm em Frankfurt – com curadoria de Thomas Frank (2004), Florian Malzacher (2002 e 2004), Christine Peters (2002), Mårten Spångberg (2002 e 2004) – que convidou os anfitriões do workshop bem como todos os colaboradores a se confrontarem com os convidados com quem não tinham ainda trabalhado junto, ou ainda melhor: com quem sempre desejaram conhecer. E lhes entregar parte do programa. Com este conceito - inspirado no conceito de Hans Ulrich Obrist de "convidar por convidar" – eles se colocaram – ao menos em relação a esta incerteza – no mesmo nível dos demais colaboradores. O mesmo ocorreu com os curadores: uma vez que o convite foi delegado a algum convidado, a própria influência de cada um foi reduzida.
[xxvi] http://www.kiosk-berlin.de
[xxvii] Ver também: Florian Malzacher e Gesa Ziemer. “Das Lachen der anderen. Doing Theory”. Em: Herbst. Theorie zur Praxis (1) 2006.
Bibliografia
Arendt, Hannah. 1989. The Human Condition. University of Chicago Press.
“Avant-Garde Art Show Adorns Belgian Homes”. The New York Times. 19 de agosto de 1986.
Bishop, Claire. 2012. Artificial Hells: Participatory Art and the Politics of Spectatorship. London and New York: Verso.
Bismarck, Beatrice von e Irit Rogoff. “A conversation between Irit Rogoff and Beatrice von Bismarck”. In: Beatrice v. Bismarck, Jörn Schafaff, Thomas Weski (Eds.). 2012. Cultures of the Curatorial. Berlin: Sternberg Press.
Lehmann, Hans-Thies. “Shakespeare’s Grin. Remarks on World Theatre with Forced Entertainment”. In: Not Even A GameAnymore. The Theatre of Forced Entertainment. Ed./Hg. Judith Helmer e Florian Malzacher. 2004. Berlin: Alexander Verlag.
Malzacher, Florian, Tea Tupajić and Petra Zanki (Eds.). Curating Performing Arts. Zagreb: Frakcija Performing Arts Journal, 2010.
Malzacher, Florian e Gesa Ziemer. “Das Lachen der anderen. Doing Theory”. Herbst. Theorie zur Praxis (1) 2006.
Malzacher, Florian and steirischer herbst (Eds.). 2014. Truth is concrete. A Handbook for Artistic Strategies in Real Politics. Berlin: Sternberg Press.
Websites
www.dictionaryofwar.org
www.international-festival.org/node/3
www.international-festival.org/node/4
www.international-festival.org/node/56
www.kiosk-berlin.de
www.mif.co.uk/event/11-rooms
www.muller-kluge.library.cornell.edu/en/video_transcript.php?f=121
www.xavierleroy.com/page.php?sp=2d6b21a02b428a09f2ebd3d6cbaf2f6be1e3848d&lg=e

FLORIAN MALZACHER, Alemanha
Diretor artístico do Theater Festival em Mülheim e região do Ruhr (Düsseldorf, Colônia, Wuppertal) e Curador do Festival Spielart, em Munique. Foi o co-curador, de 2006 a 2012, do Festival Interdisciplinar de Artes, Steirischer Herbst em Graz, Áustria.
Depois de se graduar em estudos teatrais aplicados em Giessen, Alemanha, trabalhou principalmente como crítico teatral e jornalista cultural. É membro fundador do coletivo independente de curadores Unfriendly Takeover, em Frankfurt, de 2000 a 2007, e foi co-curador do 4º e 5º Festival Internacional Summer Academy at Künstlerhaus Mousonturm, Frankfurt, em 2002 e 2004, “Performing Lectures”, em Frankfurt, de 2004 a 2006, do “Dictionary of War”, em Frankfurt, Munique, Graz e Berlim em 2006 e 2007, e também da maratona de 170 horas “Truth is concrete”, sobre estratégias artísticas em políticas, em Steirischer Herbst, em Graz, 2012.
Como dramaturgo trabalhou em teatros como Burgtheater Vienna, em Viena, Künstlerhaus Mousonturm, em Frankfurt, com artistas como o Rimini Protokoll, Lola Arias, Mariano Pensotti (Buenos Aires), e no Nature Theater, de Oklahoma, New York.
Deu aulas em universidades em Viena, Frankfurt e Berlim. Faz parte do conselho consultivo do DasArts - Master of Theatre, Amsterdam, desde 2009, e do Goethe-Institut, desde 2015. É também consultor do Festival Schillertage, em Mannheim, desde 2010, e membro da Comissão de Teatro, em Zurich, desde 2013.
Ele é editor e autor dos livros sobre as companhias Forced Entertainment e Rimini Protokoll e é também curador de artes performáticas. Recentemente lançou “A verdade é concreta - Um manual para estratégias artísticas em política real” que foi publicado pela Sternberg Imprensa em 2014.