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  • Marcelo Bones

Invasão nas Ruas de Valladolid

Espetáculo La montagne - Collectif Bonheur Intérieur Brut (créditos P. Deutsch)

Artes de Calle: 16 países, mais de 185 apresentações, três mostras. Ruas, praças, espaços alternativos: teatro, circo, dança e performance. Esse é o TAC - Festival de Teatro y Artes de Calle de Valladolid, na Espanha. Em sua XXVII edição, o evento destaca-se por sua dedicação especial às chamadas Artes de Calle (artes da rua). De meio dia à meia noite o público tem a oportunidade de prestigiar vários espetáculos e, não se engane, ele o faz. Apresentações absolutamente lotadas e público atento. Linda experiência que o Observatório dos Festivais teve a oportunidade de participar de 21 a 29 de maio desse ano.


Dividido em três mostras, o festival apresenta a “Séccion Oficial”, a “Estación Norte” – seleção de espetáculos locais – e a “Séccion OFF”. Em quatro dias de festival, as apresentações de rua ocuparam 40 espaços da cidade, rotina intensa, com até 62 espetáculos em um mesmo dia. Assistindo de quatro a cinco espetáculos diariamente, integramos a comissão responsável por escolher, dentre as participantes da “Séccion Oficial”, as montagens a serem homenageadas nas categorias melhor espetáculo, circo, inovação e interpretação. Integrando a comissão encontramos representantes da Bélgica, da Inglaterra, seis espanhóis de diversas regiões, além de nós, representando os sul-americanos.


Dentre os grupos convidados de 16 nacionalidades a América Latina teve representantes mexicanos, colombianos e argentinos, tendo como companhia grupos do Japão, Canadá e diversos países europeus, com destaque para presença

marcante da França, país com tradição e reconhecimento em produções de rua. Apesar de seu destaque e dedicação às artes de rua, o festival teve nessa edição uma pequena seleção de espetáculos para salas de teatro, em 17 apresentações que marcaram os primeiros cinco dias anteriores à mostra de rua.

Cia Kumulus (créditos Pierre Soisson)


Foi muito interessante e envolvente observar a acolhida da cidade ao festival. Restaurantes cheios e com cardápios especiais para o evento, espetáculos lotados e marcados pela presença de público de todas as idades em todos os horários. Fica nítido como os festivais de artes cênicas movimentam a economia local e geram renda em seu entorno, para além das atividades artísticas.


Outro destaque fica por conta do olhar generoso do diretor artístico Javier Martínez e seus curadores, responsáveis pela escolha das diversas montagens, contemplando múltiplas linguagens e formatos, desde o circo tradicional a propostas ousadas e inusitadas de ocupação dos espaços públicos.


Sendo realizado na Espanha, é válido ainda ressaltar o formato de festival de Valladolid, em que o alvo principal é o público, uma vez que no país as feiras, formatos destinados principalmente a programadores, são muito mais presentes.


Pensando em nossos festivais, fica a reflexão de que somos tímidos no formato para artes de rua. A falta de política pública leva a perdas claras e ainda permanentes nos festivais brasileiros, e também nos leva a uma produção e exibição não tão intensas de espetáculos de ruas no Brasil. Nesse âmbito, acreditamos que temos, sim, experiências muito diversas e de ótima qualidade no país, mas ainda exploradas timidamente pelos nossos festivais.




Sobre a Arte de Rua

Marcelo Bones


Em minha trajetória artística sempre mantive uma relação muito estreita com as artes de rua. Como diretor de espetáculos, militante de movimentos, pensador ou como gestor de festivais de teatro sempre aprofundei a reflexão de que esta modalidade artística é fundamental para uma compreensão sobre o papel da arte em nossa sociedade.


Para mim, dois dos aspectos mais significativos sobre a arte realizada na rua são sua capacidade de intervenção no território e a promoção do debate sobre a ocupação do espaço público. Toda prática criativa realizada na rua provoca uma interferência e uma desorganização nos ambientes da cidade. Verdade que estas ações, muitas vezes, não têm grande impacto visível, mas ela é sempre capaz de gerar uma reflexão, acumulativa sobre a própria cidade.


A arte de rua é uma espécie de ópera ao ar livre promovendo a provocação da possibilidade da intercessão do teatro, circo, dança, música, performance, tecnologia, etc.


No Brasil, o teatro de rua emerge, com maior potência, como manifestação nos anos 80 durante a transição da ditadura militar para um regime democrático. Apresentava em seu conteúdo uma forte conotação de movimentos sociais e políticos e levava para a rua o debate da redemocratização. Esta opção de fazer teatral foi se desenvolvendo e assistimos nos últimos anos ao crescimento de uma diversidade enorme de possibilidades de expressão artísticas nas ruas de nosso país. A incorporação de tradições populares, circo, música, dança, etc. deu ao teatro de rua feito no Brasil uma característica muito própria e muito diversa, abarcando desde grupos pequenos e ligados a trabalhos sociais até complexas montagens profissionais destinadas a grande público.


O Brasil é um país muito grande em sua extensão territorial e muito diverso nas suas manifestações artísticas e culturais tendo uma forte tradição popular em rituais e manifestações de rua. Acrescido a isto, devido a vários fatores, incluindo um clima quente durante todo ano, a rua é um lugar de muitas ações coletivas de toda a sociedade. Um exemplo grande disto é o carnaval, uma das maiores manifestações à céu aberto do mundo. Assim, temos com a rua, um grande palco para nossa expressão, fazendo com que as artes realizadas aí, se contamine com toda esta ocupação do espaço público. Outro aspecto que deve ser destacado também é a precária infraestrutura artística que temos, com poucas salas de apresentação estruturadas e estas poucas, muito centralizadas em uma pequena parte do país. Assim, para a grande maioria do povo brasileiro, ver e desfrutar das artes de rua é uma das poucas oportunidades para entrar em contato com a arte.


* Marcelo Bones é diretor teatral, programador e consultor de festivais de artes cênicas e idealizador do Observatório dos Festivais.



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