Sobre a curadoria: pistas e pedágios
“Podemos sempre fazer as coisas de outro modo.”
(Howard S. Becker)
Neste artigo estamos ocupados com o mapeamento de indícios para a abordagem de questões relativas à proliferação de ofícios nos mundos da cultura e da arte. A tentativa de delimitação de funções e responsabilidades no âmbito das “profissões” não visa separar territórios ou erguer fronteiras definitivas e visíveis entre elas. O artista, o crítico e o curador exercem, cada qual no seu quadrado, o seu próprio ofício distintamente um do outro.
Não estamos de modo algum defendendo a ideia de qualquer especialização. Pelo contrário, tudo indica que no mundo contemporâneo houve uma acelerada disfunção da especialização enquanto norma. É interessante o que o crítico Felipe Scovino diz: “Aqui é tudo muito precário, o curador é crítico, e escreve no jornal, na revista e no catálogo; e ao mesmo tempo ele é pesquisador e professor. Atua em diferentes funções; há uma promiscuidade” (REZENDE, 2013, p. 17). O que intencionamos é contribuir para a problematização e superação do clima de vale-tudo ou de falta de critérios na vasta militância “profissional” (e, também, amadora) nos mundos da cultura e da arte.
A ideia de “mundo” é uma abordagem “que abre múltiplas possibilidades, descobertas no curso de uma imersão na vida social” (BECKER, 2010, p. 312). Considerando a metáfora de mundo devemos, necessariamente, ter em conta que pessoas dos mais variados tipos e interesses estão fazendo coisas, prestando atenção umas às outras, trocando, combatendo, conspirando, confundindo, produzindo desordens no mundo do trabalho, em constante cooperação na busca de novas respostas para novas situações. Vale lembrar que, sobretudo, vamos operar com a ideia de que não existe — para nossa análise aberta — nenhuma linha visível ou invisível que possa separar esse conjunto cooperativado e colocá-lo em unidades fechadas, compartimentalizadas ou numa geração perpétua de conflitos irreconciliáveis. Então, nossa pista parece apontar para o caminho que vai dar numa certa “sociologia das profissões aplicada aos domínios das artes” e da cultura, ressaltando, no entanto, que a estrada é longa e que vamos ficar por aqui, na encruzilhada. Como pensa Becker (2010, p. 79): “Falar da organização de um mundo da arte (da sua divisão interna em diversos tipos de públicos, de produtores, e dos indivíduos que constituem o pessoal de apoio) é outra maneira de falar da distribuição dos saberes e do seu papel na acção coletiva”.
O mundo cultural possui uma dimensão social que interage com os mais diferentes lugares da sociabilidade atual, seu desenvolvimento se dá por meio de uma cadeia produtiva cuja dinâmica e diversidade faz a interligação entre as fases, elos ou estágios que compõem um sistema próprio de produção e difusão. Sistema esse que, de acordo com Teixeira Coelho (1999), pode ser resumido, em termos gerais, a quatro fases (produção, distribuição, troca e uso). Cabe ressaltar o que diz Howard S. Becker, sobre uma dessas fases:
“(…) os mundos da arte plenamente desenvolvidos criam sistemas de distribuição que integram os artistas na economia da sua sociedade. (…) E esses sistemas de distribuição, tal como outras actividades de cooperação inerentes a um mundo da arte, podem ser controlados pelos próprios artistas. Mas, geralmente, quem deles se ocupa são intermediários especializados que, por vezes, obedecem a interesses diferentes dos interesses dos artistas de quem divulgam as obras.” (BECKER, 2010, p. 99-100).
Sabemos que para fazer o sistema cultural funcionar, conforme aponta Antonio Albino Rubim (2008), torna-se necessária a ação conjunta de uma infinidade de profissionais especializados — descentralizados, porém articulados por diversas redes enviesadas de colaboração, compostas por criadores, preservadores, transmissores e organizadores.
A diversidade e as tênues fronteiras entre os campos de atuação e as especificidades técnicas de cada um dos membros dessas tribos de praticantes culturais geram muita confusão operacional. A confusão se deve, principalmente, ao fato de alguns acharem que o profissional da cultura é — senso comum — um generalista, um cara que é bem informado sobre todas as esferas da cultura e da arte, ou seja, sabe um pouco sobre muita coisa.
O fato é que o senso comum conservador — principalmente aquele que predomina entre os poderes que organizam o mundo do trabalho e as demandas do mercado — procura aglutinar e exigir em torno de um mesmo profissional (o técnico especializado em cultura) funções diametralmente opostas. É recomendável considerar que ser um profissional generalista não é a mesma coisa que ser um profissional com multiplicidade de recursos e habilidades. E o profissional melhor qualificado é aquele que possui uma diversidade de saberes com uma intensidade acima da média, ou seja, com mais conhecimento do que simplesmente informação.
A capacidade de mobilidade social que o profissional da cultura possui de migrar de um para vários setores do mundo cultural, de acordo com as demandas do ambiente no qual ele atua, não garante a obtenção de resultados eficazes. Geralmente caímos na tentação de confundir três funções similares, porém, distintas: gestão cultural, programação cultural e curadoria.
O gestor cultural é o profissional que articula e compatibiliza instrumentos gerenciais, recursos técnicos especializados, programas, ações, projetos e atividades, com vistas a alcançar uma eficácia nas relações entre instituições, investimentos, eventos e consumidores de bens culturais. O profissional que atua na área da gestão cultural “(…) deverá estabelecer uma relação entre as questões artísticas e culturais associadas aos conhecimentos sociológicos, antropológicos e políticos, bem como aos conhecimentos técnicos da comunicação, economia, administração e direito, aplicados à esfera cultural” (CUNHA, 2007, p. 125).
Em relação ao programador cultural, o diferencial na atuação desse profissional está no fato de que ele age na escala territorial local, articulando pontos de contato direto com a comunidade e com seu cotidiano, descobrindo e mapeando os problemas e desejos da comunidade, suas características e seus conflitos, estabelecendo linhas de integração com a vida cotidiana dos cidadãos que habitam e formam o bairro ou a cidade.
Tal imersão na cotidianidade suscita uma indagação padrão que ressoa na cabeça do programador cultural como uma martelada do tipo “em nome de quê é possível programar?” Esta é a questão colocada pelo pesquisador, crítico e gestor cultural português, António Pinto Ribeiro:
“Para tentar responder a esta questão, talvez seja oportuno referir dois preceitos que qualquer programador deve considerar. O primeiro tem a forma de pergunta: O que sabes que os outros não sabem, que legitima escolheres e decidires? A resposta pessoal a esta questão é crucial porque nela está contida a legitimidade e a responsabilidade de qualquer programação. (…) Uma programação implica sempre uma escolha. E uma escolha determinada, de entre as variedades possíveis de escolha, significa que uma programação é muito mais do que a soma de um conjunto de actividades. Essa escolha implica uma certa ordenação do mundo a partir da ideia de uma comunidade de afectos, de eleições ideológicas, de visões desse mesmo mundo. Nela está sempre presente a consciência de que não só incluo como excluo e, ao excluir, não posso esperar que a programação seja do agrado geral, seja uniforme.“ (RIBEIRO, 2000, p. 53-54).
É na esfera local que o programador cultural interagirá e realizará mediações que envolvem pessoas, espaços, equipamentos e outros diversificados recursos que consolidam a ação cultural. A ação local é a mediação entre o possível e o impossível no mundo, no jogo de considerações e situações a partir das demandas dos indivíduos e dos grupos no cotidiano da cidade. Quando nos referimos à ação local, ao específico do lugar-cidade, é bom atentarmos para o que diz Sloterdijk (2000, p. 48), ou seja, cuidar para não tomar o público como rebanho:
Desde O Político, e desde A República, correm pelo mundo discursos que falam da comunidade humana como um parque zoológico que é ao mesmo tempo um parque temático; a partir de então, a manutenção de seres humanos em parques ou cidades surge como uma tarefa zoopolítica. O que pode parecer um pensamento sobre a política é, na verdade, uma reflexão basilar sobre regras para a administração de parques humanos. (…) Homens são seres que cuidam de si mesmos, que guardam a si mesmos, que — onde quer que vivam — geram a seu redor um ambiente de parque.
Daí a importância da escuta e do olhar do agente provocador para a ação local, sentidos indispensáveis para a elaboração de um desenho de programação possível. A inquietação se faz sempre a partir da indagação sobre o que fazer no lugar-cidade. Beatriz Sarlo (2014: p.5) sugere pistas sobre como olhar e sentir a cidade contemporânea, ela a percebe como um caleidoscópio de estranhamentos, como um corpo grávido de crise econômica, repleta de situações invisíveis para uns e materialmente bizarras para outros, tomada por lutas de contrastes. “A cidade não oferece a todos a mesma coisa, mas a todos oferece alguma coisa”. Beatriz Sarlo adverte – na pista de Borges – para a atenção que devemos ter com, “as ficções que podem ser lidas como “teorias da cidade”, não referentes à cidade real, mas à cidade como ideia.” Escapar dos discursos que produzem modelos de cidades, decifrando “sistemas materiais de representação”, percebendo a interseção entre a cidade escrita e a cidade vivida, entre o imaginário e o real. Portanto, não existe cidade perfeita, a cidade real está em permanente construção e demolição, decadência e renovação.
Toda cidade é composta por várias comunidades, onde vínculos são negociados em escalas variadas. As comunidades demarcam as flutuações e os fluxos da cidade, criando um teatro de ações, fundando e articulando jogos de espaços, mobilidades sociais, inventariando aquilo que Michel de Certeau chama de “lugares praticados”. Uma prática feita não só de memória e narração, mas também de delimitação de fronteiras e de interlocuções. Uma prática que se apropria do espaço e “introduz uma contradição dinâmica entre cada delimitação e sua mobilidade” (CERTEAU, 1994, p. 209-17). A programação dialoga com a cidade — ela própria é a medição por excelência — e com os seus equipamentos ativos e inativos. Pois, como pontua Canclini (2000, p. 99):
“São escassos os estudos empíricos na América Latina destinados a conhecer como os artistas procuram seus receptores e clientes, como operam os intermediários e como respondem os públicos. Também porque os discursos com que uns e outros julgam as transformações da modernidade nem sempre coincidem com as adaptações ou resistências perceptíveis em suas práticas.”
Os intermediários são os mediadores sociais que fazem interagir as diferentes formas de manifestações culturais da sua cidade, manipulando todo um arsenal de comunicação direta e indireta. Eles são os pontos de conexão entre os diferentes públicos e as diferentes experiências culturais potencialmente espalhadas por todos os cantos da cidade mapeando necessidades e desejos, preparando o terreno para os encontros, questionando, estimulando os sentidos do público.
A ação cultural, no caso o nosso foco está centrado nas artes cênicas, deve ser fruto de um laborioso processo de mesclagem entre reflexão e intuição. Um plano de programação deve ser substancialmente um “laboratório experimental”, comportando tanto a realização e a verificação de novas concepções, métodos, técnicas e tecnologias de planejamento, administração e execução de projetos quanto a proposição de atividades especiais e inéditas. Entretanto, em hipótese alguma descuidando da manutenção e sistematização daquelas atividades e projetos que comprovadamente são eficazes quanto aos seus objetivos, realizações e resultados alcançados. A ciência e a arte de programar dependem do exercício sistemático deste equilíbrio entre a regularização e a inovação. Pois, experimentar é avançar sobre o que já foi conquistado, empurrando para o novo, tendo sempre como suporte o que foi feito anteriormente. Elaborar um plano de programação de atividades cênicas é dispor as ideias de tal maneira que elas sejam transformadas em instrumentos eficazes, capazes de mapear um itinerário, no sentido de atingir o objetivo principal: o público.
O público só aflui aos espaços culturais quando há uma oferta de atividades. Mas para programar é necessário saber que público é esse. É comum se deixar levar pelas suas aparências camaleônicas. Os vários significados de público se misturam e escapam pelo corpo escorregadio da sociedade civil, sempre em movimento. Pode se referir a uma população organizada, um bairro, uma comunidade de afinidades e, regra geral, é associado a uma ideia de multidão ou de massa sem rosto ou individualidade. Se falamos de um público quando nos refirimos aos destinatários de uma programação, devemos tomar o cuidado de não reduzi-lo a uma circunstância de consumo. É melhor evitar a zona de conforto e considerar o que sugere Warner (2008, p. 15):
“Um público é algo tanto nocional como empírico. Também é parcial, já que poderia existir um número infinito de públicos dentro da totalidade social. (…) É algo que se cria a si mesmo e se organiza a si mesmo; se autogera e se autogestiona, e por isso radica o seu poder, assim como sua elusiva estranheza.” (1)
A programação cultural é um conjunto de projetos e atividades organizados por um período longo. O programador cultural trabalha necessariamente com projetos regulares, de formação e expansão do gosto médio e de alcance mais amplo das plateias. Seu foco é a educação dos sentidos, o desenvolvimento de hábitos culturais, a ampliação da sensibilidade dos públicos por meio de exercícios de fruição e acesso à diversidade cultural.
No espaço do artigo nos limitaremos a analisar comparativamente as funções do curador e do programador cultural, percebendo as semelhanças e diferenças dos dois ofícios. Evidentemente que muitas características, atitudes e habilidades são comuns aos dois profissionais e no mundo das ações coletivas elas podem ser intercambiadas. Mas curadoria não é a mesma coisa que programação cultural. Certamente que as questões de método acerca da curadoria são infinitas e subjetivas e, em sua maioria, importantes e válidas no amplo e complexo quadro da vida cultural contemporânea. Mas o que é mesmo um curador? O que é mesmo que ele faz? Curador cuida de quê? Leonzini (2010, p.10), diz que o que os curadores mais fazem
“é olhar a arte e pensar sobre a sua relação com o mundo. Um curador tenta identificar as vertentes e comportamentos do presente para enriquecer a compreensão da experiência estética. Ele agrupa a informação e cria conexões. Um curador tenta passar ao público o sentimento de descoberta provocado pelo encontro face a face com uma obra de arte.”
Há também certa insistência em ver semelhanças de funções em profissionais distintos ajustando no mesmo suporte conceitual as figuras do crítico e a do curador. É o que mostra Rezende (2013, p. 9/10):
“Ainda é bastante perceptível como os mecanismos de profissionalização no Brasil permitem uma frequente e frequentemente afortunada “promiscuidade’ entre o papel de crítico, curador, professor, artista, ou seja, diferente e simultâneas articulações de pontas do circuito, rara em outros contextos.”
Talvez, pelo fato de que ambos sejam egressos do que Rezende (2013, p. 8) chama de “campo da teoria após as inúmeras proclamações do fim da história, do fim da história da arte e outras parusias crítico-conceituais”. O trabalho do curador é o mesmo do crítico? Vejamos: grosso modo, um curador cuida, conserva e distribui, de maneira oposta ao crítico que examina, separa e seleciona. Um curador pensa relações e conexões, o crítico pensa em rupturas e autonomias. O curador organiza oportunidades e espaço para as coletividades, o crítico legitima modelos e individualidades.
Uma definição operacional para o conceito de curadoria é a de que ela é uma técnica, um pensamento e uma visão das obras em relações de influências e sentidos organizadas no tempo e no espaço. Uma vertente do trabalho da ação curatorial é basicamente estruturada a partir da aproximação de trabalhos, semelhantes ou diferentes, dispostos lado a lado: “(…) em nosso campo de visão, ou mesmo na memória, eles se comunicam e se contaminam, não apenas um doando sentido ao outro, mas permitindo o surgimento de sentidos pela aproximação deles” (ALVES, 2010, p. 55).
Mas a arte da curadoria também investe na contramão do gosto hegemônico ou homogêneo das plateias. Cria um recorte na programação para possibilitar uma percepção laboratorial, de tentativas e erros, tanto para o público inquieto quanto para os artistas inventores radicais. Neste sentido, as escolhas do curador são pelo dissenso, pela margem, na perspectiva de criar oportunidades para o surgimento de produções e percepções do futuro.
A curadoria, quando vista como um modo particular de agir na sociedade por meio de uma ação cultural que pensa a arte como contraponto aos padrões dominantes, imagina um cenário, um recorte eventual, construindo uma delimitação no tempo e no espaço, para possibilitar leituras possíveis das obras agrupadas num determinado local (parede, teto, chão, ponte, viaduto, estação do metrô, galeria, teatro, cinema, edifício, elevador, banheiro público, praça, rua, cidade, território) ou conjunto de lugares e equipamentos obedecendo às leis do tempo (duração, período, estação, época), promovendo um tipo de mediação diferente com a sociedade. Pois “a principal missão do curador, a meu ver”, diz Cintrião (2010, p. 41), “é criar métodos e formas de apresentar um determinado grupo de obras (ou objetos, documentos etc.), de maneira a facilitar a compreensão do espectador, buscando acessar todo e qualquer tipo de público.”
O curador é aquele que, numa espécie de moto-contínuo, redefine o seu ofício a cada projeto que desenvolve, levando em consideração circunstâncias e arranjos sociais, pois sua maior qualidade é a de ser um articulador e construtor de sentido. “Seu ofício de revelar camadas de significação das obras em sua relação com outras obras e contextos particulares permanece, a meu ver, instrumento de conhecimento” (FERREIRA, 2010, p. 148).
O curador é um pensador. Um pensador da práxis, um arranjador de obras em perspectiva utópica, seja alinhavando narrativas ou estruturando temáticas. A curadoria é um processo de seleção e agrupamento de obras artísticas com a finalidade de provocar os sentidos, de mostrar tendências, novos ângulos ou diferentes visões de mundo. As obras são capturadas nos mais distantes espaços e realidades e reinseridas num novo circuito de atividades, acontecimentos e vivências sob a forma de mostras, festivais, residências, encontros ou feiras, regidas pelo eixo curatorial com o objetivo de manter ou modificar seus significados de origem. Esta operação da imaginação cria ambientes de trocas, de influências entre artistas e público. Estamos diante de uma atitude agenciadora de possibilidades para o desenvolvimento cultural local. Neste sentido, podemos dizer que o curador é um criador. Criador de valores culturais, que por sua vez colaboram para a formação de um importante tipo de capital, o capital social. Dentre os organizadores, o curador é um tipo específico de profissional que se destaca por sua capacidade de aliar responsabilidade social e imprevisibilidade imaginativa. “Discutir o ofício do curador implicaria pensar a sua função social e também o papel que exerce no campo da educação não formal.” (ALVES, 2010, p. 50)
A curadoria é um dos principais elos das conexões contemporâneas entre cultura e cidade. A atividade curatorial transforma-se em ação cultural quando mescla imaginação, ação e reflexão. Vira uma ação poderosa que “penetra no tempo presente e viabiliza aquilo que sua imaginação pré-sentiu, pré-dispôs — ligando-se assim ao processo cultural concreto” (COELHO, 2008, p. 93). De modo geral, o curador que faz a diferença no circuito no qual está inserido é aquele que desvela, revela, descobre uma obra ou artista, um grupo ou movimento. Retira a sua descoberta do suposto limbo ou obscuridade, da margem ou periferia, fazendo-o migrar para a centralidade de outros olhares.
Embora a nomenclatura seja moderna, o ofício do curador é antigo; podemos tomar como marco importante o século XVI, quando surgiram os gabinetes de curiosidades, “pequenas salas-enciclopédias onde eram expostos objetos de toda espécie, como animais empalhados ou vivos, conchas, moedas, louças, esculturas, enfim, produtos da natureza e do homem, muito difundidos na Europa, a partir de 1550” (CINTRÃO, 2010, p. 16). No século XVI, os acervos eram agrupados por toda a parede, do alto do teto ao rés do chão da sala, catalogadas, reunidas por afinidades, tipos, gêneros e arranjos que obedeciam ao gosto — às vezes, excêntrico — do colecionador, que usava critérios pessoais para explicar cada item exposto aos visitantes, “fazendo na época, o papel que vários profissionais exercem até hoje de pesquisador e curador a educador.” (CINTRÃO, 2010, p. 20).
Para o curador, sua ética é criar oportunidades para a nova geração de artistas. O novo, o desconhecido, o futuro. Pois sua matéria prima é a reinvenção das relações entre arte e vida. Ela propõe novos intercâmbios entre o público e a obra, entre o artista e a sociedade. Deseja instigar novos modelos de estímulos sensoriais, desenvolvendo os sentidos dos espectadores, ampliando os campos de recepção.
A curadoria é arte de oferecer diversidade em oposição às padronizações midiáticas. Porém, neste terreno como em qualquer área da humanidade não há unanimidade, sempre existiu e existirão programadores de arte e diversão que pensam e pensarão o contrário. Um exemplo antigo que influencia até hoje os poderes constituídos é o de Juvenal, no império romano, ao criar a fórmula “Pão e Circo”:
“Quanto às influências bestializadoras, os romanos já tinham instalado a mais bem-sucedida rede de meios de comunicação de massa do mundo antigo, com seus anfiteatros, seu açulamento de animais, seus combates de gladiadores até a morte e seus espetáculos de execuções.” (SLOTERDIJK, 2000, p. 18)
O curador é aquele que se coloca no lugar do espectador “naif”, deixando-se levar pela trama, aderindo à participação subjetiva que a experiência cênica lhe propõe; depois, procura equilibrar sua análise fruidora, considerando aspectos da experiência apresentada e o potencial inacabado — os elementos que foram abafados — que toda obra apresenta no percurso do seu projeto ético-estético. Ele tenta escapar das armadilhas do gosto pessoal ou do bom gosto legitimado pelos especialistas ou “entendidos”, no sentido que Alessandro Fersen denomina como a atitude do espectador bizantino, aquele que acredita que o único critério de valor é a consideração estética instrumentalizada por um saber a priori.
Bizantinos e naïfs na plateia estão sentados um ao lado do outro, entretanto oferecem o exemplo mais flagrante de duas qualidades opostas de atenção teatral. O espectador naïf adere de corpo e alma à trama do espetáculo; sua adesão é acrítica. Foi ao teatro para deixar-se envolver por uma “história”. Transferiu-se para o palco assim que o pano se levantou: é um ator visual. Agora está concentrado na fala dos atores-personagens e até imita o movimento dos seus lábios, repetindo interiormente cada palavra que é pronunciada. Depois, vai até fazer algumas críticas: mas todas elas dependerão da possibilidade de participação que o espetáculo lhe propiciou. É o espectador autêntico: uma espécie cada vez mais rara. (…) Ao lado do naïf, aprecia o espetáculo o espectador bizantino. O acontecimento dramático chega até ele filtrado através de seus diafragmas culturais. Entrega-se ao enredo com cautela. Sua atenção crítica despe o personagem de seu disfarce e põe a nu o ator que assumiu a alma do personagem. Com a mesma frieza, o olho bizantino examina o cenário, as roupas, o jogo de luzes; enquanto isso, o ouvido distingue as músicas da cena. (…) A avaliação que resulta disso diz respeito à direção, estabelece comparações com o texto, ratifica o nível dramatúrgico do roteiro inédito. Dificilmente este espectador concede-se algum momento de relaxamento: ele não é uma pessoa que “se entrega” (as exigências do gosto erigem-se assim em normas de “bom gosto”). (FERSEN, 1987, p. 9-15)
O que a curadoria pratica em última análise é a arte do espectador. Não o espectador envolvido por uma relação ótica passiva, alienado pela sociedade do espetáculo. Cabe lembrar aqui Guy Debord:
“A alienação do espectador em favor do objeto contemplado (o que resulta da sua própria atividade inconsciente) se expressa assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo. Em relação ao homem que age, a exterioridade do espetáculo aparece no fato de seus próprios gestos já não serem seus, mas de outro que os representa por ele. É por isso que o espectador não se sente em casa em lugar algum, pois o espetáculo está em toda parte.” (DEBORD, 1997, p. 24).
Rancière nos convida a pensar em contraponto a Guy Débord, no espectador que ao mesmo tempo “ganha distância” (Brecht) e, também, “perde toda a distancia” (Artaud). Para ele, “Todo espectador é já actor da sua história; todo o actor, todo o indivíduo de acção, é já espectador da mesma história” (RANCIÈRE, 2010, p. 28).
“Qual é de facto, a essência do espetáculo segundo Guy Debord? É a exterioridade. O espetáculo é o reino da visão e a visão é a exterioridade, ou seja, é a privação da posse de si. A condenação humana do espectador pode resumir-se numa fórmula breve: “Quanto mais contempla, menos é.” E aqui, mais uma vez, voltamos ao paradoxo do espectador. Para Rancière (2010, p. 8-9):
“(…) não há teatro sem espectadores. (…) Ora, dizem os acusadores, ser espectador é um mal; por duas razões. Em primeiro lugar, olhar é o contrário de conhecer. O espectador permanece face a uma aparência, ignorando o processo de produção dessa aparência ou a realidade que essa aparência encobre. Em segundo lugar, o olhar é o contrário de agir. O espectador fica imóvel, passivo. Ser espectador é estar separado ao mesmo tempo da capacidade de conhecer e do poder de agir. É preciso um teatro sem espectadores, no qual quem assiste aprenda, em vez de ser seduzido por imagens, no qual quem assiste se torne participante activo, em vez de ser um voyeur passivo.”
Estamos diante de vários problemas e nenhuma solução. A curadoria é um laboratório para o exercício de jogos entre emissores e receptores. Isto, é claro, exige outro modo de pensar as coisas da cultura e das suas políticas. O laboratório do curador é a rua. O curador flana pela cidade, pratica a arte da derivação, observa o que está a sua volta, identifica, seleciona, mistura, relaciona, agrupa, separa, recorta, cria conexões, desconecta, tenta reproduzir e oferecer ao outro o fascínio de uma descoberta, o êxtase de uma experiência vivida enquanto espectador. Um espectador, como exemplifica o pesquisador teatral italiano Alessandro Fersen, mais naif do que bizantino. Embora este autor apresente o espectador naif como aquele que se deixa levar pela proposta do espetáculo, o que nos interessa especialmente é a sua posição de espectador que não tem uma recusa a priori e sim uma generosidade ao observar e de se deixar afetar. De modo algum, porém, podemos tomá-lo como aquele espectador passivo de que fala Guy Debord.
O curador precisa exercer o papel de um espectador que se entrega à trama do espetáculo e não fica brigando com ele a partir de ideias pré-concebidas. Ele não toma a si mesmo como única referência, imagina-se no lugar de outros espectadores, na pluralidade de olhares, de pontos de vistas, de receptores diversos. Baseando-se numa metodologia de tentativas e erros, a ação curatorial contém uma porção grande de subjetividade. Antes de tudo, o curador deve gostar de instigar o cidadão a sentir o prazer de interagir com a manifestação artística. Tanto quanto gostar de arte, o curador precisa amar divulgar o prazer que o desenvolvimento da apreciação artística provoca na vida.
Notas:
(1) Tradução minha.
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Sidnei Cruz é dramaturgo, diretor teatral e gestor cultural. Criou e coordenou o Projeto Palco Giratório – Rede Sesc de Intercâmbio e Difusão das Artes Cênicas (de 1998 a 2007) e publicou o livro Palco Giratório, uma difusão caleidoscópica das artes cênicas (Dantes, 2010). Atualmente é gerente de cultura da Escola Sesc de Ensino Médio.
Este artigo foi publicado no site da revista Questão de Crítica www.questaodecritica.com.br
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