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Perfil: Entrevista com Guilherme Reis do Festival Cena Contemporânea de Brasília
Ator, diretor e produtor cultural Guilherme Reis está há dezenove anos à frente de um dos mais reconhecidos festivais de artes cênicas do país, o Cena Contemporânea de Brasília. Hoje diretor e curador do Cena, Guilherme faz há quase três décadas, desde a época em que atuava na UNB frente ao Festival Latino-Americano de Arte e Cultura, o papel de levar grupos estrangeiros e novas propostas cênicas à cidade. Com o olhar de quem cresceu e se formou culturalmente na planejada Brasília, ele se lembra do isolamento artístico que a cidade vivia em sua juventude e de onde veio a vontade de possibilitar trocas e levar novidades para a capital. Guilherme conta ainda da satisfação de divulgar grupos desconhecidos, dos desafios de um curador e da dificuldade para se conquistar o apoio político dos dirigentes da cidade.
Observatório dos Festivais: Como foi sua trajetória até se tornar curador?
Guilherme Reis: Na verdade, desde lá dos anos 70, a gente do teatro de Brasília sentia que vivia em uma pequena cidade no interior no Brasil, ficávamos muito isolados. Sabíamos de coisas que passavam pelo Brasil e não vinham aqui de jeito nenhum. Quando descobríamos que tinha artista na cidade, batíamos na porta do hotel e pedíamos pra ir lá no colégio pré-universitário falar com a gente. Então, desde que eu comecei a fazer teatro, me preocupei com o intercâmbio, com a troca, com criar possibilidades de vinda de artistas e de maior informação.
Em meados dos anos 80 o Cristóvão Buarque me chamou pra trabalhar na UNB (Universidade Federal de Brasília) de forma interdisciplinar, quebrando as barreiras entre departamentos distantes, e criamos o Festival Latino-Americano de Arte e Cultura. Foram edições bacanérrimas desse evento, embora com produções muito simples, que trouxeram para Brasília tudo que na época era novidade no Brasil. Eu me lembro dos meninos do Grupo Galpão em 1977 acampados no campus e batendo tambor por lá.
A partir daí, ficou claro pra mim a necessidade de termos na cidade um espaço de intercâmbio, um festival. Em 1995, criei o Cena Contemporânea e desde então já são 19 anos que eu dirijo, programo e coordeno o festival.
OF: Pra você o que caracteriza uma boa curadoria?
GR: Eu acho que a gente não pode falar de uma boa curadoria sem levar em consideração o contexto. Uma boa curadoria pra Brasília pode não ser uma boa curadoria para outra cidade, outro festival com outras características. No nosso caso a gente busca a diversidade. Eu busco uma soma de projetos artísticos que no conjunto constituam uma obra, um discurso. Há uma preocupação também em trazer espetáculos que reflitam certo engajamento cidadão dos artistas contemporâneos.
OF: Quanto tempo leva para a curadoria de um festival, como o de Brasília, ser realizada? É um trabalho individual? Se não, quem acompanha?
GR: O tempo é muito variado. Há grupos que eu venho falando com eles há cinco anos e de repente a coisa se concretiza. Mas normalmente é um trabalho de um ano recebendo propostas de tudo quanto é jeito, de todo mundo, sugestões de parceiros que sabem a cara do festival e indo atrás também.
OF: Existe diferença em fazer curadoria nacional e internacional? E de espetáculos locais?
GR: Existe. No caso do internacional e do nacional o critério da escolha não é tão diferente, o que é diferente é a possibilidade de concretizar essa escolha. Com os grupos nacionais é muito mais direto, porque eu já conheço. Aí eu entro em contato e vejo se posso pagar o cachê, a carga, as passagens. Não tem muito drama. A gente não abre período de inscrição em Brasília, recebo propostas o ano inteiro.
No caso dos internacionais já passa mais por outras variáveis, inclusive as econômicas... Se for trazer da Europa ou do Canadá, por exemplo, eu vou atrás de parcerias, apoios institucionais, etc. Agora, se for de países como Irã, Cuba ou da África, que têm mais dificuldades, nesse caso a gente paga, bancando integralmente nosso desejo. Muitas vezes eu deixo de trazer porque ficou caro demais, o grupo não conseguiu apoio e faço opção por outro que também preserve qualidade, mas seja economicamente viável.
Já no caso dos grupos locais, a gente abre período de inscrição, monta uma comissão de seleção e faz a curadoria local.
OF: Falando um pouco mais do Cena Contemporânea, como é exercer esse papel de diretor e curador ao mesmo tempo?
GR: No nosso caso essas funções se completam, não há uma oposição. É um festival privado, até hoje a gente vive dificuldades de relacionamento com o governo local, tem ano que a gente tem o apoio, tem ano que não... depende do governo, depende de orçamento, depende de boa vontade... é muito diferente de BH ou Porto Alegre onde o festival é da cidade, o próprio governo banca o festival. Isso tem um lado positivo que eu tenho uma enorme liberdade e por outro lado tem o ponto negativo da dificuldade que é fazer sem ou com pouco apoio dos governos. Não existe, ou pelo menos são raríssimos, os festivais no mundo que são feitos sem o apoio da cidade, e aqui a gente vem vivendo essas dificuldades políticas, mas mesmo assim estamos crescendo e consolidando o festival cada vez mais.
OF: Onde está a alma de um curador?
GR: A alma está no coração, a alma sofre um pouquinho... Porque uma curadoria não reflete apenas o desejo do curador. Ela passa pela possibilidade econômica, de acordos, pelas oportunidades que surgem, e, infelizmente, a gente não tem dinheiro pra bancar o desejo 100%. Então muitas vezes eu sou obrigado a deixar de lado certas coisas que têm a ver com um conceito ou um desejo mesmo, pra trabalhar com o que viável, o que é possível, e tudo isso conforma uma curadoria.
O segredo é a junção desses três lados de um curador: a vontade, a articulação e a possibilidade. Eu não consigo separar isso. Eu morro de inveja de alguns curadores que falam “se virem eu quero isso”, eu não posso me dar esse luxo, porque aqui o trabalho é diferente, esses três lados estão intimamente ligados.
OF: Nesses anos de festival, você já fez alguma loucura ou correu risco na escolha de algum espetáculo?
GR: Ah, eu faço isso todo ano! (Risos). Eu acho que loucura mesmo eu nunca fiz nenhuma não... Mas já teve de tudo aqui... a gente corre riscos de trazer coisas que às vezes a gente sabe que as pessoas vão achar esquisito ou ousado demais ou careta demais, mas que são escolhas que eu me dou essa liberdade.
O que caracteriza o Cena é ter trazido ao Brasil grupos absolutamente desconhecidos, que estavam surgindo em seus países e que depois voltaram várias vezes. Ousadias como de trazer grupos muito jovens da Polônia ou da Rússia, são exemplos de uma busca pela qualidade e não só pelo nome do artista ou renome do grupo e nesse ponto a gente acerta muito.
OF: Já passou alguma saia justa ou situação complicada nesses anos de festival?
GR: Muitas, muitas. Já vivemos várias questões envolvendo carga, por exemplo. Em 2005, os poloneses do Stowrzyszenie Teatralne vieram com o espetáculo El Niño e tiveram sua carga retida no Porto de Santos por causa de uma greve da receita federal. Daí foi uma confusão, liga pra um, liga pra outro, liga pra gabinete de ministro e, no fim das contas, eu acabei negociando com o comando de greve. Alguém lá entendeu que era teatro e que poderia liberar. Conseguimos na última hora e passamos duas noites montando aquelas estruturas metálicas gigantescas, para o espetáculo que era de rua.
Teve também uma confusão enorme em 2006 com os cenários de O Sopro, do Lume de Campinas, e A falta que nos move, da Christiane Jatahy. Depois da apresentação tínhamos que encaminhar os dois cenários para o Rio de Janeiro e contratei um caminhão para o serviço. Vários dias depois nada da carga chegar, ninguém conseguia achar esse caminhão e, já no desespero, a gente ficou sabendo que o motorista tinha sido preso junto com a carga em Sete Lagoas. Na saída de Brasília ele recolheu setenta máquinas caça níquel, botou dentro do caminhão e se mandou. Esse motorista estava fazendo um bico, mas ainda por cima ele era oficial da aeronáutica. Enfim, foi preso, a carga retida, os grupos desesperados. Resumo da história: foram três ou quatro meses para liberar os cenários tive de contratar advogado em Sete Lagoas, ir lá umas quatro vezes. Tudo pra fazer o juiz entender que uma coisa era uma coisa e outra coisa era outra coisa.
OF: E alguma história curiosa que ficou marcada?
GR: Tem sim, tem histórias de amor, também! O Gabriel F., um ator aqui de Brasília, foi contratado como receptivo uma vez e ficou responsável pelo grupo espanhol Provisional Danza, da coreógrafa Carmen Werner. Na ocasião ele acabou conhecendo o bailarino Igor Calonge e se apaixonaram perdidamente. O Gabriel se mudou pra Espanha, se casaram e vivem em Bilbao há muitos anos. Este ano o Gabriel vem ao Cena com o espetáculo bilíngue Adaptação. Muito legal!
OF: Maior satisfação desses anos de Cena...
GR: Eu tenho todo ano. Dá um trabalho do cão! Quando começa o festival a equipe toda já está muito cansada. Temos uma equipe pequena, mas de muita qualidade e que faz o festival nos últimos oito anos juntos. Mas a satisfação de ver os espetáculos acontecendo, as salas lotadas, a repercussão que gera na cidade, o carinho que a cidade tem pelo festival é uma satisfação enorme. Então todo ano eu tenho esse orgasmo festivaleiro!
OF: Você contou vários apertos que passou e ainda bem que se salvou de todos! Nós do OF presenciamos um de seus maiores apertos. Foi em 2006, no espetáculo Arena conta Danton*, da Cibele Forjaz, quando seu nome foi sorteado para a guilhotina e foi uma farra no teatro com as pessoas gritando “Mata! Mata!”, mas você teve muita sorte porque alguém do público gritou a seu favor e você foi poupado da sentença de morte!
GR: (Muitos risos). Que bom! Fui salvo da guilhotina do Danton! (Risos).
*O espetáculo, da Cia. Livre, discute a “ditadura da violência”, a partir do conflito entre os dois famosos revolucionários franceses Danton e Robespierre. Enquanto o primeiro pedia moderação no período do Terror (set. de 1793 a jul. de 1794) o segundo incitava o combate duro aos inimigos. Na discordância e luta pelo poder Danton acabou sendo guilhotinado. O espetáculo, por sua vez, recebia o público pedindo aos espectadores que escrevessem em bonequinhos de papel nomes daqueles que deveriam ser executados em prol da revolução, por uma guilhotina de papel.